Hugo Navarro da Silva |
Milagre é acontecimento extraordinário e perceptível, em que
não pode deixar de entrar a providencial mão de Deus. Normalmente ultrapassa ou
contraria forças da Natureza. Dizem os estudiosos que o milagre, apesar de suas
características, não vai contra as leis naturais, que apenas em certos casos são
derrogadas. Entende-se, portanto, que o milagre não interfere com a criação,
mas nela está incluído como parte fundamental. Assim, interfere com a morte. O
sujeito está condenado, pela Medicina e toda a parafernália médica, a morte
certa e irrevogável perecimento, mas lhe aparece pessoa, com alguma intimidade
com o divino, a lhe receitar chá de folhas e de ervas misteriosas, recitar
orações de forças desconhecidas ou manda-lo a correr na Avenida de Getúlio
Vargas, e ais o candidato a defunto, em poucos dias, a comer sarapatéis e a
perguntar onde fica o bar do Zequinha. Quem entende do assunto recomenda,
apenas, cautela no reconhecimento e proclamação do milagre no caso das doenças
nervosas, o que equivale a dizer que ninguém acredita na cura do irresponsável,
nem por milagre, ou, parafraseando o hino do Flamengo, da autoria de Lamartine
Babo, uma vez maluco, sempre maluco, o que seria correto afirmar, também, do vigarista.
O milagre, embora encarado com extrema severidade e cuidado
em certos setores da fé, serve, além da cura, para expulsar demónios dos
possessos e para lição e exemplo da humanidade, como é o caso de bonança depois
da tempestade, o da pesca miraculosa e o da multiplicação dos pães. O da transformação da água em vinho seria,
talvez, considerado por muitos como o mais útil, mas dele poucos tratam.
Ligado intimamente à fé, o milagre (é o que se afirma) teria
existido desde que o homem se libertou da animalidade, embora ninguém saiba,
exatamente, quando tal fato se deu, da
mesma forma como ninguém pode afirmar tenha realmente acontecido, frequenta o
mundo muito antes das vigentes religiões. Provas da afirmativa, que nada tem de
extraordinária, estariam em ex-votos encontrados entre os assírios, no templo
de Diana, em Éfeso, no de Apolo, em Delfos e Esculapius em Epidauro, fazendo
nascer rendosa indústria de velas e artefatos de madeira, cera e até de metal,
simulando partes do corpo humano. É a indústria dos milagres. Luiz da Câmara
Cascudo faz referência à “Casa da
Cera”, que durante muitos anos existiu, no Recife, com “um grande estoque de
ex-votos”, que andaram a encher, e ainda entopem sacristias e partes de templos
especialmente destinadas a acolhê-los. Há, no Brasil, igrejas e outros lugares
de oração famosos pela enorme quantidade de ex-votos que abrigam, espalhados no
chão, em prateleiras, e até pendurados do teto, formando, às vezes, tétricos, gigantescos e empoeirados cenários a lembrar
sofrimentos, dores e amarguras.
O milagre, com o tempo, evoluiu, portanto, do divino para o
humano, ingressou no folclórico e, vitoriosamente, no mundo dos negócios. Há,
nesta cidade, lugares onde milagres são oferecidos, ao povo em geral, com dia e
hora marcados. Só o preço não é divulgado, por motivos óbvios.
Um fato, entretanto, não deixa de despertar curiosidade. Não
há mais ex-votos em Feira de Santana. Antigamente, e no mundo de hoje o dia de
ontem já é antigo, havia ex-votos, poucos, é verdade, na Igreja do Cruzeiro
(Alto do Bonfim), que desapareceram, não havendo pistas do destino que lhe
deram, o que pode levar o incauto a acreditar que nesta terra não há milagres,
o que é negado, agora, com a proximidade das eleições, que produzem, em Feira,
o milagre das grandes obras do governo do Estado, embora ainda em forma de veementes e repetidas promessas.
Esse comovente acontecimento leva-nos a crer na necessidade da realização de
eleições, anualmente, pelo bem da comunidade, que tem o direito de sonhar.
O povo sabe, entretanto, que na verdade “quem toca o sino
não acompanha a procissão”.
Hugo Navarro da Silva - Santanopolitano, foi
aluno e professor do Colégio Santanópolis. Advogado, jornalista escreve para
o "Jornal Folha do Norte". Gentilmente, a nosso pedido, envia
semanalmente a matéria produzida
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