Discute-se, na Câmara Municipal, projeto de lei que obriga todos os proprietários de estacionamentos privados a manter manobristas de plantão e a cobrir toda a área destinada aos automóveis e congêneres. O projeto, que se destina, principalmente, a atingir supermercados e shoppings, inédito e inaudito, despertou acerbas disputas conceituais envolvendo modernas regras da técnica legislativa a ponto de resultar em imoderação de linguagem e lesões graves à ética parlamentar, criando embaraços resolvidos e superados diante da salutar recomendação do sr. Camões, a de que "cesse tudo que a antiga musa canta, que outro valor mais alto se alevanta", no caso, o interesse de povo pagador, com baixos salários, de escorchantes impostos, juros e correções inflacionárias.
Já tivemos a oportunidade de pedir calma a legisladores e governantes a respeito do comércio, o principal sustentáculo deste Município, cujo crescimento, extraordinário e desordenado, não é fenômeno que deve ser havido como sedimentado e inamovível. Está a ocupar trancas, ruas, praças, avenidas, vielas e passeios, mas pode desaparecer com a mesma facilidade com que surgiu, porque seu intuito é lucro e lucro não tem pátria, nem bandeira. Vale lembrar, faz pouco mais de dez lustros, mesa e poltrona dos principais comerciantes da Praça da Bandeira eram caixotes de querosene Jacaré e, a escrita, lançada em papel de embalagem dos fósforos Moça e dos Cigarros Aromáticos de Leite & Alves. Evidente que deve haver regras, normas, limites legais, que todos somos mais ou menos submissos ao discernimento ou aos disparates dos legisladores, os novos príncipes criados pela república. Mas, evidentemente, para tudo deve haver lindes, até para o interesse. Faz parte da política divulgar o número de projetos criados como prova de dedicação e trabalho do legislador. À utilidade e sensatez deles nunca se faz referência.
No aceso das discussões, ameaças e xingamentos, surgiu, entretanto, sugestão salvadora. A invés de construir telheiros, a lei poderia obrigar os donos de estacionamentos a plantar árvores, para abrigar metais, borrachas e plásticos de que são feitos os veículos. Sugestão mais profunda, moderna, de natureza socialista, poderia ser aventada, a de forçar os supermercados a criar hortas comunitárias nos estacionamentos. Enquanto uns comprariam as bolachas, outros poderiam, com tranquilidade, ir colhendo a abóbora, o aipim e a batata doce, cultivadas ecologicamente, para o café da manhã, maravilha que nem Platão imaginou para a sua Atlântida. E tudo a preços populares!
Importante lembrar, aos incautos, que o projeto cria obrigações para os estacionamentos particulares. Os públicos, como os da Câmara, estariam tranquilamente isentos de telheiros. A proposição dirige-se contra o comércio, o que é um erro, e vai em busca de notoriedade para o autor. A procura da notoriedade tem seus perigos. Funcionário de circo, um certo P. T. Barnum, em 1836, Anápolis, Estados Unidos, para chamar a atenção do público vestiu-se como notório e odiado criminoso, o reverendo Ephraim Every. Foi espancado, na rua, por multidão revoltada. A publicidade quase lhe custa a vida.
O automóvel saiu dos sonhos dos brasileiros para se transformar em meta de vida e de ascensão social. Quem não tem carro, hoje, sente-se como o judeu do poeta, um precito. Há gente que deixa de providenciar o chinelo da mãe velha, pobre e descalça, para comprar o adereço do carro, que na mente das pessoas e nas ruas congestionadas corre picula com as motocicletas.
Por mais importantes que sejam automóveis e motos, entretanto, ninguém quer ver a cidade transformada em imensos telheiros e coberturas semelhantes a tumbas. Bastam as terríveis lonas da Avenida do Senhor dos Passos a lembrar antigos naufrágios em revoltos e sinistros mares de tempestade.
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