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segunda-feira, 27 de junho de 2011

DA SÉRIE DE "TEXTOS PARA PENSAR"

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A Pós-Graduação nas Ciências Humanas e o paradigma da Medicina na era da especialização
Posted: 25/06/2011 by Revista Espaço Acadêmico in colaborador(a), educação, pedagogia, universidade
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por CÉLIO JUVENAL COSTA*
As palavras que se seguem poderão soar conservantismo, serem até reacionárias, pois se trata de uma reflexão que nada contra a correnteza do que se pratica hoje nas universidades brasileiras. Assumo o risco de ser conservador neste momento, pois o contexto atual de formação dos mestres e doutores, atuais e futuros professores de nossas faculdades e universidades, é revelador de uma tendência que coloca em xeque a própria essência do termo universidade. A palavra de ordem hoje parece ser: especializar cada vez mais e mais cedo para se produzir um saber cada vez mais específico e competente.
Carlo Ginzburg, o autor de O Queijo e os Vermes, no texto intitulado Sinais: raízes de um paradigma indiciário, ao analisar o método mais conseqüente para o historiador, afirma: “Nas discussões sobre a ‘incerteza’ da medicina, já estavam formulados os futuros nós epistemológicos das ciências humanas”. Como não é intenção nesse momento discutir o posicionamento de Ginzburg, até porque o autor faz referência a outro teórico, só faço tomar emprestado essa relação entre ciências humanas e medicina para auxiliar na reflexão sobre a dicotomia, sempre permanente na academia, entre especialização e formação geral.
Salta aos olhos, hoje em dia, o grau de especialização que a medicina alcançou nos últimos tempos. Na área de traumatologia, por exemplo, dificilmente encontramos, em clínicas mais sofisticadas, um ortopedista que atenda pacientes que reclamam de dores em várias partes do corpo. Com certeza, há médicos especializados em pés, outros em joelhos, outros em dores lombares e assim por diante. Não está distante o dia em que encontraremos especialistas de joelho diferenciados, um para ligamentos, outro para menisco, outro para tendão etc. Sem dúvida, a crescente especialização nas várias áreas médicas traz inúmeros benefícios, pois um determinado problema tem como assistente um profissional que é profundo conhecedor daquele problema. Inclusive hoje já é bastante comum as pessoas em geral desconfiarem de profissionais das áreas médicas que ainda não se especializaram o suficiente.
No entanto, em nível mundial, existe, atualmente, uma discussão de fundo ético, sobre a validade dessa crescente especialização. Como exemplo desta verdadeira polêmica – infelizmente de primeiro mundo somente – temos o último livro da trilogia de Noah Gordon, intitulado Doutora Cole. Os dois primeiros livros de Gordon – O Físico e Xamã – são uma espécie de história da medicina nos séculos XII e XVIII, sob a forma de romance em que os personagens principais são membros de uma família de médicos que tinham o dom especial de prever a morte. Em Doutora Cole, ambientado nos anos noventa do nosso século, a primeira médica da história da família discute exatamente a polêmica acerca da especialização na medicina, polêmica traduzida pela sua opção em deixar sua especialidade e, com isso, abrir mão de um ótimo ganho anual, para ser médica de família numa cidade do interior dos Estados Unidos. A opção feita pelo autor entre as duas possibilidades do exercício da medicina torna-se clara quando a personagem principal do livro não se arrepende da decisão tomada a partir do momento que descobre que as doenças, em geral, que as pessoas apresentavam estavam sempre ligadas a um histórico familiar que não envolvia somente aspectos biológicos. Talvez a “incerteza” da medicina resida exatamente aí: na não certeza absoluta que quanto mais especializado for o profissional, melhor médico será. O que se passa hoje em nossas faculdades e universidade brasileiras não parece ser muito diferente dessa “incerteza” da medicina.
Assistimos nos últimos anos um crescente aumento dos cursos de mestrado e doutorado nas ciências humanas. Antes, praticamente só havia cursos de pós-graduação no eixo Rio-São Paulo; hoje o Brasil todo tem seus mestrados e doutorados, resultado natural da qualificação de professores durante as décadas de oitenta e noventa que, ao retornarem para suas universidades, passaram a vislumbrar a possibilidade de criar novos programas. Nos últimos anos, com a criação e a organização das agências nacionais de fomento e avaliação – Capes e CNPq – e o grande número de pós-graduações no Brasil, verificou-se a diminuição do tempo para os alunos integralizarem seus cursos. Com o recente aumento na oferta de cursos de doutorado, os prazos para a conclusão do curso de mestrado diminuíram praticamente na mesma proporção. Já se fala oficiosamente em diminuir também os prazos para o doutorado em virtude das pós-graduações se caracterizarem como programas conjuntos, onde é comum o aluno fazer os dois cursos no mesmo lugar. Outro fator determinante para o encurtamento da duração das dissertações e teses é a cobrança sistemática que as agências oficiais de fomento e avaliação fazem aos próprios programas de pós-graduação. Professores e alunos devem ter, segundo parâmetros pré-estabelecidos, uma gama de atividades que, somadas, indicam o grau de produtividade do programa e o habilita ou não a continuar existindo e recebendo financiamentos, bolsas, incentivos etc.
Nas universidades, até independente dos programas de pós-graduação, os professores estão submetidos a uma contínua avaliação de suas atividades, cuja produtividade o habilita a subir alguns degraus na carreira – como nas universidades estaduais do Paraná -, ou a ter um acréscimo ao seu salário – como nas universidades federais -. Sem pretender fazer uma análise profunda dessa realidade, o fato é que às vezes tem-se a impressão de que os professores têm que disputar, ano a ano – ou bienal, trienal, dependendo da universidade -, uma espécie de ATP tour[1], ou seja, têm que defender seus “pontos” de anos anteriores para não cair no ranking e ser penalizado. A palavra de ordem nas nossas universidades hoje em dia parece ser “corrida pela quantidade”; quantidade de artigos, bancas, eventos, cargos.
Paralelamente a esses novos instrumentos de quantificação e avaliação do desempenho docente, mas fazendo parte do mesmo contexto, encontra-se uma lógica de motivação pragmática da formação dos futuros cientistas e professores universitários. Os programas de Iniciação Científica, os grupos PET, os inúmeros projetos de pesquisa, ensino e extensão que são desenvolvidos em nossas universidades estão contribuindo positivamente para a inserção no mundo da ciência de milhares de estudantes que, desde cedo, tomam gosto pela carreira acadêmica e, quando chegam nos cursos de pós-graduação, encontram-se realmente bem preparados para fazer suas pesquisas. Como conseqüência deste fato, a média de idade dos novos mestres e doutores tem caído muito nos últimos anos. Hoje, em departamentos de universidades que há quinze anos atrás contavam com dois ou três doutores, a grande maioria já atingiu ou está na iminência de atingir esse grau acadêmico. Praticamente não há intervalos entre o final da graduação e o doutorado.
Pois bem! Apesar de comungar com a idéia de que é necessário que as nossas universidades e agências de fomento continuem investindo maciçamente na qualificação docente, resultando num incremento cada vez maior no número de mestres e doutores, gostaria de chamar a atenção para algo que me parece passar um tanto despercebido nesse processo. A “corrida” pela pós-graduação gera necessariamente, por parte do pós-graduando, uma opção por determinado tema, linha de pesquisa ou autor, que comumente se torna objeto de pesquisa tanto no mestrado como no doutorado. Com certeza, o resultado dessa formação é bastante satisfatório tendo em vista aquela especialidade escolhida. Com certeza também, os produtos excedentes da pesquisa – eventos, artigos, futuros projetos – serão da mais alta qualidade e merecedores de mais investimento. Essa especialização continua firme depois da pós, pois o recém mestre ou doutor, ao entrar ou retornar para uma universidade, vai continuar desenvolvendo suas atividades científicas no âmbito da especialidade, criando ou alargando grupos de pesquisa, orientando alunos da graduação etc.
No entanto, o resultado dessa especialização para o exercício da docência, principalmente na graduação, é que me preocupa. O aumento da especialização das ciências humanas acontece na proporção da desvalorização – consciente ou não – do professor que tem uma formação mais ampla, geral, universal. [2] Todos os professores, até por dever de ofício enquanto pesquisadores, acabam se tornando especialistas em algum tema e, a partir de dado momento, dedicam sua vida acadêmica ao desenvolvimento de estudos relativos àquele tema. No entanto, a grande maioria dos professores que tiveram sua qualificação em décadas passadas, são aqueles que têm uma formação mais geral e universal o que compreende um domínio competente do vasto campo de atuação.
Pensemos, por exemplo, o curso de Pedagogia e, mais especificamente, a área de Fundamentos da Educação. As disciplinas que compreendem essa área devem fornecer ao aluno uma visão histórica, filosófica, sociológica e psicológica da educação, comumente desde a antiguidade clássica até os dias atuais. Ora, deste vasto universo, os professores elegem, naturalmente, um tema para ser pesquisado com profundidade e por longos anos. No entanto, os professores que têm uma formação mais geral conseguem transmitir o conteúdo específico de uma dada disciplina sem perder a didática e a competência, pois, entendem que até para conseguir dar conta de um tema específico de pesquisa devem possuir uma visão de conjunto, uma visão universal. Um tema de pesquisa geralmente compreende uma pequena parte de uma disciplina, sendo que o restante dela obriga que o professor se preocupe com uma formação mais genérica para o pleno exercício de sua profissão.
O fato preocupante no atual contexto consiste em que a formação genérica dos nossos professores acaba sendo deixada de lado em prol da precoce e contínua especialização dos atuais e futuros professores das “safras” mais recentes. A conseqüência para a docência, principalmente nas salas de graduação, é a dificuldade em se trabalhar com tranqüilidade e competência toda uma gama de conteúdos que vai além daquilo em que se especializou. Não sou idealista a ponto de achar que todos os professores teriam que ter uma formação universal apurada, como a que encontramos em autores clássicos. Não posso, porém, me contentar com uma realidade que, em nome da produção em série de jovens cientistas em universidades, desloque para um segundo plano a formação ideal para o exercício da docência. Sempre nos colocamos como críticos do ensino fundamental que esfacela o conteúdo das disciplinas como se fossem gavetinhas separadas e que não proporcionam ao aluno uma visão inter e multidisciplinar. Raramente somos críticos de nós mesmos: ao não refletirmos sobre a especialização precoce e contínua de nossos professores universitários, corremos o risco de também criarmos tantas gavetinhas quanto nossas pesquisas permitirem.
A especialização na medicina já encontra resistência em algumas partes do mundo. Ninguém, em sã consciência, nega os efeitos altamente benéficos das pesquisas médicas resultantes das especialidades. No entanto, o que se critica é a lógica que está por detrás, ou seja, o enxergar o homem não como um conjunto orgânico, biológico, psicológico e social, mas como uma somatória de partes que podem ser tratadas separadamente. Essa lógica é a do capital. Essa lógica permite que os médicos, quanto mais especialistas forem, quanto mais competentes se mostrarem, mais ricos se tornam, mais status adquirem e mais se distanciam da grande maioria das pessoas que não possuem recursos para um tratamento tão sofisticado.
A lógica pragmática da produção precoce e contínua dos cientistas especialistas com certeza trará ótimos resultados para a ciência no Brasil, mas isto impede a preocupação com o reverso da medalha, pois há que se preocupar também com a formação dos nossos professores. O profissional da educação, cada vez mais especializado, está se tornando também um bom professor? Creio que a resposta a essa pergunta pode revelar uma situação no mínimo preocupante. A resposta, porém, a essa pergunta pode sugerir, também, que esse tema receba uma atenção maior por parte da comunidade universitária.


* CÉLIO JUVENAL COSTA é Professor do Departamento de Fundamentos da Educação da Universidade Estadual de Maringá e Doutor em Educação pela Universidade Metodista de Piracicaba. Publicado originalmente na REA, nº 06, novembro de 2001, disponível em http://www.espacoacademico.com.br/006/06celio.htm
[1] Associação dos Tenistas Profissionais. O chamado ranking de entrada é estabelecido pelos pontos conseguidos nas últimas 52 semanas e devem ser defendidos no ano seguinte para não cair e deixar de ser convidado a participar de grandes e milionários torneios. Se um tenista ganha um torneio num ano e perde no ano seguinte, ele não só deixa de ganhar os pontos correspondentes ao campeão, mas perde aqueles que conquistou no ano anterior. Uma observação pertinente e justa se faz necessária: essa “metáfora” não é originalmente idéia minha e sim de um amigo igualmente preocupado com a questão tratada aqui.
[2] Ao não querer reeditar a histórica polêmica nos cursos de licenciatura é que não adjetivo como generalista o perfil do professor que se opõe ao especialista.

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