- Alguma coisa deu errado na capital?
O coronel
ainda em pé, respondeu:
- Fecha a porta e senta aqui junto de mim, não
posso falar alto, as paredes têm ouvidos.
Começava aí
a paranoia que tomou conta de todos os brasileiros durante a ditadura.
- O que está acontecendo, homem de Deus?
- Senta e escuta.
- Fala logo, Salustiano...
- D. Emengarda. Tenho que prender o prefeito
Gilberto e tomar a prefeitura.
- Você tá ficando louco, Salú, veio da capital
com a cabeça virada.
Sentiu o
cheiro da cachaça que ele havia bebido na hora que chegou e disse:
- Ah! Já sei... Andou bebendo. É isso que dá.
Você sabe que não pode beber. Quando bebe fica logo achando que é dono do
mundo...
O coronel
dá um grito.
- Pára de tagarelar, mulher e me escuta.
D. Emengarda
se sentou novamente e ficou olhando para o coronel.
- Escuta o que eu vou te contar. Só faça
escutar.
- Fala logo!
- Eu fui pra Recife e recebi a ordem do
Comando Militar para prender o Prefeito Gilberto e assumir a prefeitura com
amplos poderes. Sabe o que é isso?
- Sei... Claro que sei.
- Pois é. Amanhã pela manhã tenho que tomar
providências para executar tudo que está aqui dentro deste envelope.
- E o que tem dentro deste envelope, homem?
- Eu ainda não sei, vou ler agora à noite, e
quero ficar sozinho. Você vai dormir em outro quarto que eu quero ler isso
sozinho.
- Tá certo.
D.
Emengarda saiu devagar, fechou a porta e deixou o coronel olhando pela janela.
Quando tudo
estava em silêncio, o coronel pegou o envelope, abriu com cuidado e retirou
todos os papéis que estavam dentro. Viu logo na primeira folha a ordem de
prisão contra o prefeito Gilberto. Leu atentamente e viu que tinha a chancela
do Alto Comando do Exército, portanto tinha que ser cumprido à risca.
Em seguida,
havia a mesma ordem de prisão contra o atual delegado da cidade e o pior de
tudo, havia uma ordem de prisão contra o padre José.
O coronel
não entendeu o porquê e também não queria que o padre fosse preso, pois o
respeitava muito e era amigo do religioso.
Nos
documentos, havia uma cartilha que explicava tudo o que deveria ser feito. Os
presos deveriam ficar incomunicáveis e tinham que confessar onde estavam os
outros comunistas nem que essa confissão fosse forçada através de torturas.
Havia
também um manual de torturas, coisa que deixou o coronel Salustiano muito
angustiado, pois sempre fora contra qualquer tipo de violência física.
E agora? O
que fazer?
O coronel
não conseguiu dormir a noite toda. Caminhou pela casa imaginando como iria
cumprir tudo aquilo que estava escrito.
O dia ainda
não tinha amanhecido e o coronel nem sequer tomou o café da manhã. Saiu
apressado e foi acordar o padre José.
Bateu à
porta e sussurrou na janela:
- Padre, sou eu, coronel Salustiano.
O padre
levantou assustado, abriu a porta e perguntou:
- O que houve coronel? Alguma coisa que eu
possa ajudar.
- Padre, vista sua batina e venha comigo. Não
se demore. Não quero que me vejam saindo com o senhor.
- Fala logo coronel, algum problema na sua
família?
O coronel
irritado grita com o padre.
- Deixa dessa conversa de comadre e venha
assim mesmo. Entra no Jeep e vamos ali.
- Mas, ali aonde, coronel?
- Vamos logo antes que eu perca a paciência.
O padre mal
abotoou a batina e já estava dentro no Jeep do coronel.
Saíram sem
destino. O coronel pegou uma estrada ruim e, sem falar nada, acelerava cada vez
mais rápido por um destino ignorado.
O padre
estava assustado e se segurava por causa dos solavancos que o carro dava até
que a velocidade diminuiu e o coronel parou debaixo de um pé de umburana. Era
um local totalmente deserto e não havia ninguém por perto, mesmo assim o
coronel desceu do carro e verificou se não fora seguido e se não havia nenhuma
ameaça por perto. Entrou novamente no carro, olhou fixamente para o padre e
disse:
- Padre, eu tenho o maior respeito e admiração
pelo senhor, por isso, sem me perguntar o porquê, fuja da cidade ainda hoje.
- O padre arregalou os olhos, começou a suar e
argumentou:
- Não posso abandonar a cidade assim sem mais
nem menos. Tenho que comunicar meus superiores antes de tomar qualquer
decisão...
- Cala essa boca padre. Faça o que estou
mandando. Tenho ordens pra prender o senhor, e antes que eu me arrependa, fuja.
- Mas coronel, posso ao menos saber qual o
motivo?
- Padre, o senhor sabe que estamos em plena
revolução, não me faça perguntas, apenas fuja pra não ser preso. É só isso que
lhe peço.
- Mas quando é que devo fazer tamanha
besteira.
- Agora padre! Já! Vou dar ao senhor uma hora
pra pegar suas coisas e fugir, sem dizer nada a ninguém que tivemos esta
conversa. Ninguém deverá saber nunca que eu mandei o senhor fugir. Me
entendeu?
- Entendi sim, coronel.
O coronel
ligou o Jeep, manobrou em direção à cidade e voltaram calados. Chegando à
porta da casa paroquial, o padre olhou pro coronel, e com lágrimas nos olhos
agradeceu.
- Obrigado coronel, um dia eu mando notícias.
- Desça logo, padre e boa sorte!
Padre José
desceu e entrou em casa. O coronel arrastou o carro bem devagar pra não chamar
atenção e voltou pra casa.
O dia estava
clareando.
Nenhum comentário:
Postar um comentário