(In memória Irma Amorim)
De repente, sentiu necessidade de abrir aquele velho guarda-roupas, prisão de lembranças, agora esquecido no quarto dos fundos da casa. Precisa encontrar um documento antigo, que só podia estar ali, faria prova curricular na escola de música. É que, à falta do que fazer, resolvera voltar a tocar piano. Fora pianista amadora, seus dedos percorreram teclados como o do majestoso piano de cauda, ainda na sala da casa. Este piano, agora inerte, servindo apenas de enfeite, era o orgulho da família. Nos saraus organizados por seus pais, ele era a principal atração. Naquela época, tudo era motivo de alegria. Até a visita do vetusto afinador de pianos, um homem meio trôpego, sempre cheirando a bebida alcoólica, mas como se transformava quando sentado ao piano para a afinação! Suas mãos ágeis derramavam pela morada o néctar harmonioso de Bach, Bethoven, Litz...
Nos dias de reuniões musicais, os convidados todos, meio apavonados, cheirando bem, sentavam-se em volta do piano: as senhoras em vestidos esvoaçantes e de finos tecidos, comprimidas em espartilhos, e os homens, empertigados em roupas de linho engomado, postavam-se em pé ou sentados, cuidadosamente, procurando manter o vinco das calças e evitando o amasso do tecido. Tudo num perfeito estilo rococó!
Abriu a porta do quarto e respirou um ar impregnado de aromas do passado,
uma mistura de mofo com lavanda e amaciante. Na penumbra, enxergou a boneca de
pano e bambolê, juntos à bicicleta
infantil. Aqueles brinquedos foram, um dia, de Juliana, sua filha – zum, zum! –
passeando de bicicleta pelas calçadas do bairro e mostrando ser uma exímia
equilibrista do bambolê, levando-o da cintura ao pé, do pé á cabeças, ao braço,
para gáudio e aplausos de todos. Um dia – ah, menina sem juízo! - Juju, mal completou a maioridade, fez a sua
declaração de independência. Disse, sem demonstrar nenhum remorso: “-Mãe, vamos
viajar, eu e meu namorado, para conhecer gente nova e lugares...”. De modo
decidido, jogou a mochila nas costas e saiu porta afora, deixando ela, sua mãe,
aos prantos. Nunca mais deu notícias... “-Ah, Juliana, onde você anda, minha
filha? Será que está girando o mundo como girava seu bambolê?” – pensou, com um
travo de tristeza na garganta e uma lágrima furtiva no rosto...
Quando escancarou as portas do móvel, foi como se fenestrasse os umbrais
da alma, a história de sua vida. Lá estavam os guardados, relíquias de família,
objetos de estima dos seus pais que teimou em preservar, porque continham
histórias de vida contadas em coisas. Tudo bem arrumado, sem um grão de poeira,
como se ali colocados recentemente, começou a retirar peça por peça para
procurar o que queria.
Escorregando do meio das toalhas de tecedura artesanal que sua mãe
bordara, com carinho, algo caiu no chão indo parar em baixo do guarda-roupas.
Tentou ver o que caíra, mas inutilmente. Tomada pela catarata, sua visão era
ruim embora ainda fosse dia. Contraiu os olhos, na tentativa de melhorar a
visão, os óculos de grossas lentes ausentes, esquecidos em cima da cômoda da
sala. Acendeu a lâmpada do quarto, ajoelhou-se com dificuldade e tateou por
baixo do móvel, sujando-se de poeira e teias de aranha, até que sentiu os dedos
tocarem em algo macio. Com cuidado, pegou a peça, evitando que se sujasse em
contato com a poeira acumulada. Trouxe-a para próximo da luz. Aproximando-a do
rosto sentiu o odor e enxergou, com dificuldade, o formato gracioso do bordado.
Algo fez com que disparasse o seu coração quando constatou: era ele, o lenço
perfumado!
O lenço, o seu lenço! Ele que estivera durante anos em sua bolsa e com o
qual enxugara suores nos dias quentes, limpara a boca tirando o excesso de
batom e enxugara muitas lágrimas, como as derramadas quando viu o namorado de
asa arriada pela oferecida da Marlene... O lenço que encharcava de perfume e
quem quando abria a bolsa, inebriava o ambiente com seu olor único e
irresistível! O lenço amarelecido pelo tempo, mas que lhe parecia tão novo pela
redescoberta... Nem fazia ideia de que ele estivera ali tão perto, durante
tanto tempo, ao alcance da mão, bastando
abrir uma porta de guarda-roupas. Curiosamente, há pouco, o belo adereço era
apenas mais uma lembrança, algo que guardara esquecido durante tempos...
Lembrou-se dos versos da poetisa Irma Amorim, sua amiga, que Deus levara para
junto de si:
“ Há de se deixar espaço
- luzes, tochas acesas,
Cortinas rendadas,
Tapetes,
Jarro com flores,
- lenço perfumado –
E amores. (...)”
Irma Caribé Amorim |
Envolvida nas dobras do tempo, com o olhar perdido, um sorriso brincando
nos lábios, recupera a vaidade feminina que o lenço lhe devolvera. Tenta
ajeitar-se, passando as mãos nos cabelos, enxugando as lágrimas. Como num passe
de mágica, o poeirento cubículo transmuda-se em salão de baile e, desembarcando
da carruagem do tempo, a mulher madura, levantando-se do chão com a dificuldade
que os anos lhe legara e se ver no espelho da alma como adolescente Cinderela
calçando imaginários sapatinhos de cristal.
Nos braços de um príncipe encantado, sai rodopiando pelo salão,
sentindo-se invejada por todas as outras mulheres...
Ah, que maravilha, o lenço!
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