Antonio Edson Santanopolitano |
“Eu tinha 13 anos, em Fortaleza, quando ouvi gritos
de pavor. Vinham da vizinhança, da casa de Bete, mocinha linda, que usava
tranças. Levei apenas uma hora para saber o motivo. Bete fora acusada de não
ser mais Virgem e os irmãos a subjugavam em cima de sua estreita cama de
solteira, para que o médico da família lhe enfiasse a mão enluvada entre as
pernas e decretasse se tinha ou não o selo da honra. Como o lacre continuava
lá, os pais respiraram, mas a Bete nunca mais foi à janela, nunca mais dançou
nos Bailes e acabou fugindo para o Piauí, ninguém sabe como, nem com quem.
Eu tinha apenas 14 anos, quando Maria Lúcia tentou escapar, saltando o muro alto do quintal da sua casa para se encontrar com o namorado. Agarrada pelos cabelos e dominada, não conseguiu passar no exame ginecológico. O laudo médico registrou vestígios himenais dilacerados, e os pais internaram a pecadora no reformatório Bom Pastor, para se esquecer do mundo. Realmente, esqueceu, morrendo tuberculosa.
Estes episódios marcaram para sempre a minha
consciência e me fizeram perguntar que poder é esse que a família e os homens
têm sobre o corpo das mulheres? Ontem, para mutilar, amordaçar, silenciar.
Hoje, para manipular, moldar, escravizar aos estereótipos. Todos vimos, na
televisão, modelos torturados por seguidas cirurgias plásticas. Transformaram
seus seios em alegorias para entrar na moda da peitaria robusta das norte americanas.
Entupiram as nádegas de silicone para se tornarem rebolativas e sensuais,
garantindo bom sucesso nas passarelas do samba. Substituíram os narizes,
desviaram costas, mudaram o traçado do dorso para se adaptarem à moda do
momento e ficarem irresistíveis diante dos homens. E, com isso, Barbies de
fancaria, provocaram em muitas outras mulheres - as baixinhas, as gordas, as de
óculos - um sentimento de perda de auto-estima.
Isso exatamente no momento em que a maioria de
estudantes universitários (56%) é composto de moças. Em que mulheres se afirmam
na magistratura, na pesquisa científica, na política, no jornalismo. E, no
momento em que as pioneiras do feminismo passam a defender a teoria de que é
preciso feminilizar o mundo e torná-lo mais distante da barbárie mercantilista
e mais próximo do humanismo.
Por mim, acho que só as mulheres podem desarmar a
sociedade. Até porque elas são desarmadas pela própria natureza. Nascem sem
pênis, sem poder fálico da penetração e do estupro, tão bem representado por
pistolas, revólveres, flechas, espadas e punhais. Ninguém diz, de uma mulher,
que ela é de espadas.
Ninguém lhe dá, na primeira infância, um fuzil de
plástico, como fazem com os meninos, para fortalecer sua virilidade e
violência. As mulheres detestam o sangue, até mesmo porque têm que derramá-lo
na menstruação ou no parto. Odeiam as guerras, os exércitos regulares ou as
gangues urbanas, porque lhes tiram os filhos de sua convivência e os colocam na
marginalidade, na insegurança e na violência.
É preciso voltar os olhos para a população feminina
como a grande articuladora da paz. E para começar, queremos pregar o respeito
ao corpo da mulher. Respeito às suas pernas que têm varizes porque carregam
latas d'água e trouxas de roupa. Respeito aos seus seios que perderam a firmeza
porque amamentaram seus filhos ao longo dos anos. Respeito ao seu dorso que
engrossou, porque elas carregam o país nas costas.
São as mulheres que irão impor um adeus às armas,
quando forem ouvidas e valorizadas e puderem fazer prevalecer a ternura de suas
mentes e a doçura de seus corações.
Nem toda feiticeira é corcunda. Nem toda brasileira
é só bunda.
(Rita Lee.)
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