EMANOEL FREITAS – Santanopolitano, jornalista,
advogado, editor do Blog “Viva Feira”, recomendado ao lado, pelo Blog Santanópolis,
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Era década de 70, viver no Rio de Janeiro,
apesar do momento conturbado da história que o Brasil passava, era extremamente
prazeroso. Foi uma época de tomada de consciência, estávamos lutando para recuperar a democracia
e a liberdade perdida e, de certa forma éramos como naus a deriva buscando um
porto qualquer, uma vez que até a informação era censurada pelos órgão
oficiais, as notícias mais confiáveis tínhamos através da imprensa alternativa
e as mais comprometedoras eram passadas verbalmente, razão pela qual
valorizávamos por demais encontros e bate-papos informais, onde quer que
fossem.
Encontrar Seu Arquimedes era sempre muito
divertido e instrutivo, ele vivia nas mesmas imediações que eu, ali nas
proximidades da Rua Machado de Assis, Rua Almirante Tamandaré, por ali, no
Flamengo. Não sei exatamente em que prédio ou em que Rua ele morava, nos
encontrávamos na Padaria ou bar localizado no térreo do prédio onde eu residia
ou simplesmente andando pela praia do Flamengo. Nas cidades grandes isso é muito
comum, é possível fazer amigos por encontrá-los sistematicamente no ponto do
ônibus na ida para o trabalho ou para faculdade, outros quando estamos voltando
para casa, no balcão do cafezinho do boteco ou padaria próximo de onde moramos
e que costumamos frequentar, os vezeiros do futebol na praia, e de mais uma
infinidade de situações, sem saber realmente
quem são, e qual a verdade de cada um deles. Algumas poucas destas
amizades sedimentam com o tempo, outras desaparecem “sem que, nem pra que1”.
Seu Arquimedes era um aposentado da
Petrobras, com muitas histórias de conspirações políticas para contar e, apesar
da época difícil que a ditadura militar impunha, se declarava sem fazer
segredo, ser um comunista convicto, e mantinha vivo, quando expressava seu ódio
pelo regime militar, dentre outras argumentações a de uma conspiração, no
mínimo engraçada, na qual afirmava, com convicção, que havia um movimento
homossexual para tomar o controle do mundo inteiro e que era fortíssima no
Brasil. Fora este devaneio, que apesar de engraçado não havia nenhuma evidência
de realidade, suas demais opiniões não demonstrava sinais de insanidade e, os
dados históricos e fáticos que citava conferiam com a realidade, de modo que
não poderíamos descartá-lo como completamente louco, apenas como paranoico e
homofóbico, expressão que não era usada à época, até porque a sociedade tinha
muito de homofóbica naquele momento histórico.
Sempre havia uma lição qualquer nas
opiniões de Seu Arquimedes, para cada situação uma ponderação, da maioria
podíamos até gargalhar, mas não poderíamos nunca, de modo algum, rir da “teoria
da conspiração2” de que o mundo estava sendo ocupado por homossexuais, que
alias nosso amigo achava por bem de denominá-los de “veados”, de forma
contundente e acintosa. Quanto maior o cargo, maior a difamação do indivíduo,
pois o adjetivo também ia para o aumentativo, "(…)ah esse aí é um
veadão(…)", afirmava Seu Arquimedes em relação a alguns membros da
ditadura e do governo de então, e ainda tinha "(…)é um veadão dos mais
perigosos(…)", para o caso de cargos de grande importância. Ai de quem
ousasse discordar, certamente faria um inimigo, e poderia até ganhar a fama de
estava do lado dos conspiradores ou de ser no mínimo um simpatizante. Ninguém
se arriscava. O máximo que chegávamos era na indagação: “Será Seu Arquimedes, o
homem tem mulher e filhos?”; ao que ele respondia sem vacilar: "É pra
disfarçar, eles são perigosíssimos, querem tomar conta do mundo e de tudo farão
para enganar os bobos".
Envelhecer e aposentar-se faz dos mais
inteligentes contadores de histórias (e estórias), e este era o traço mais
interessante da personalidade de Seu Arquimedes. A sensação que nós tínhamos
nos encontros com ele era de que ele havia vivido tanto quanto Matusalém, pois
sempre tinha alguma (hi)estória para contar, a cerca da maioria das nossas
experiências. Normalmente acompanhadas de alguma lição, que em regra eram
extremamente plausíveis e geralmente continha alguma graça. Apesar da sisudez
que lhe era comum ao referir-se a
conspiração homossexual que tomaria conta do mundo, suas demais lições
eram carregadas do bom humor típico dos cariocas.
Um outro amigo nosso, de nome Ubirajara,
que no Rio vira "Bira", destes que encontramos comumente na hora do
cafezinho, costumava lamentar e reclamar sobre tudo. Até quando seu Vasco
ganhava, pra ele tinha jogado mal. Nada era satisfatório. Um verdadeiro
pessimista, que tinha o hábito de normalmente se queixar de suas relações
amorosas. Vivia a lamentar-se e ofender a ex-mulher e mãe de seus dois filhos,
em função das brigas sobre pensão alimentícia. Não poupava ofensas a pobre
mulher, que embora nós não a conhecêssemos, mantínhamos uma certa desconfiança
de suas afirmações, em virtude de só surgirem, quando das discussões sobre a
pensão. Invariavelmente Seu Arquimedes afirmava pra Bira: “Nunca fale mal da
mãe dos seus filhos, pois se você ficar afirmando que ela era descarada, você
era corno e, a bem da verdade, de mulher descarada tem um bocado de gente que
gosta, ao passo que corno fica desmoralizado a vida inteira. Tem sempre alguém
pra dizer que o cara é incompetente, por isso mesmo, é melhor você elogiar
sempre a mãe de seus filhos, e nunca se esqueça de afirmar que ela sempre foi
uma santa e da maior confiança. Se perguntarem porque você se separou, diga que
o adultero foi você. Te garanto que a fama de machão é muito melhor que a de
corno prá gente carregar o resta da vida, meu filho.”
Sábio Seu Arquimedes!
NOTAS:
1 – Sem que, nem pra que:
expressão muito usada em diversas regiões do Brasil, que da uma certa ênfase
para dizer que aconteceu alguma ou algum fato ou alguma coisa sem motivo algum.
2 – Teoria da conspiração
(também chamada de conspiracionismo) é qualquer teoria que explica um evento
histórico ou atual como sendo resultado de um plano secreto levado a efeito
geralmente por conspiradores maquiavélicos e poderosos,[1] tais como uma
“sociedade secreta” ou “governo sombra”
Da série: Pelo mundo afora…
Publicado em: 10/07/2020 - no Viva Feira
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