Hugo Navarro da Silva |
Ler “Caminhando pela Cidade”, livro recentemente lançado por
Cíntia Portugal, é como revisitar Feira de Santana de todos os tempos com os
olhos, o coração e algum aperto no peito. O aperto da saudade e das lembranças
do que passou e não volta mais, tragado pelos inevitáveis e às vezes enganosos
caminhos do progresso.
A edição, trabalho da “Via Litterarum”, de Itabuna, com
projeto gráfico e diagramação de Carla Piaggio, é perfeita e encantadora.
Leva-nos tranquila e gentilmente a deliciosos passeios pelas ruas, becos e vielas de Feira, que transmitiam,
salvo raras exceções, sentimentos
de paz e liberdade a qualquer hora do dia ou da noite, sem o receio de assaltos
ou morte por bandidos de todas as idades, que
nos dias presentes obrigam o
feirense a viver recluso, protegido de grades e cercas elétricas. O regime
imposto ao povo desta terra, nos dias artuais, diferencia-se muito pouco
do adotado na Penitenciária da Papuda para aonde levaram uns poucos
mensaleiros.
No passeio sentimental a escritora lembra, inicialmente, a
velha Sales Barbosa, com o seu calçamento de pedras irregulares, o poeta que
lhe dá o nome e quase ninguém sabe mais quem foi e o que fez, no trabalho pertinaz e eficiente
das novas gerações em que as novidades, como a música do tabaco, subjugam e
fazem esmaecer figuras do passado e o
papel que tiveram no mundo.
A pavimentação irregular das ruas Sales Barbosa, Marechal
Deodoro e General Pedra, perdurou, por muito tempo, antes de desaparecer sob o
asfalto do progresso. Quando prefeito,
Aguinaldo Boaventura, certo dia,
resolveu melhorar o calçamento da General Pedra, dizia, em benefício das
senhoras, que quebravam o salto do sapato nas pedras irregulares em virtude de
que havia, nas ruas, excesso de mulheres
capengando. O trabalho não era pequeno. A General Pedra sai da Praça do Nordestino, atravessa a
Rua Monsenhor Tertuliano e termina na Des. Filinto Bastos, abrangendo os
antigos Beco do Pus e do Bom e Barato. A obra avançava, mas, ao que parece,
faltou dinheiro e o prefeito resolveu, simplesmente, usar as mesmas pedras, mas
viradas de baixo para cima, substituindo as partes lisas, gastas pelo uso,
pelas faces crespas, que estavam
enterradas, fundamentando a decisão no fato de que os escorregões seriam
evitados.
O livro lembra, entre outras coisas, com toques de poesia e
suavidade, o velho Beco do Ginásio, tormento dos bedéis do Ginásio Santanópolis,
inclusive da velha e gorda D. Isaura, a
perseguir estudantes que pulavam o muro para cair nas doçuras do beco.
Estudante, na época, nem sempre tinha dinheiro, mas, que desfrutava de grande
prestígio no Beco do Ginásio, não havia dúvida. Outros becos famosos foram
lembrados, como o da Energia, nos fundos das instalações da “Companhia de
Energia Elétrica da Bahia” e o célebre Boco do Mocó, couto de desordeiros e
bandidos célebres e sede de perigosas bagunças, local propagador da maconha
nesta santa cidade de inocentes e pios indivíduos. Ali reinou, durante muitos
anos, uma certa Nazareth, bonitona e desejada, que mandava e desmandava, secava
maconha ao sol, em bandejas, no rol da casa, e uma Olívia, já gorda, fora de
forma, oriunda do Casino Irajá, que montou boteco e quando zangada ou cheia de cana desafiava
os mais valentes e promovia, no dizer de Djalma Boaventura, “um cacete medonho”.
Quando Compadrinho chegou ao beco com a sua “farmácia”, enorme coleção de
garrafas de cachaça com ervas e raízes do toda natureza, capazes de exterminar
qualquer doença, o local já estava quase pacificado, evitado, entretanto, por
quantos julgavam ter juízo. Hoje, como a Rua General Pedra, o Beco do Mocó é
ocupado por empresários respeitáveis. A velha bagunça desapareceu
completamente.
O livro de Cíntia
Portugal além de cultura, é delicioso da primeira à última página.
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