Tudo começou numa noite em que acordou assustado, sentindo a sensação
de cócegas no peito. Levantou-se, foi à cozinha, abriu a torneira do filtro,
encheu o copo com água, bebendo em seguida. Pareceu-lhe que dezenas de pezinhos
ou patinhas percorriam, velozmente, seu corpo como que fugindo da água. O fato
estranho deixou-o nervoso, impaciente. Com
muita agilidade, parecia que um ser afobado, vivo, nitidamente caminhasse pelo
seu corpo, indo do coração ao fígado, do estomago para a garganta. Era um
desconforto que não sabia descrever... Nervoso, passou a tossir, mas a sensação
continuava: um bichinho em fuga por
dentro do seu corpo, dando-lhe comichões. Sem poder coçar, já que aquilo acontecia
internamente, passou a esmurrar o peito, sem resultado...
Vendo que não resolvia o problema, sentou-se num banquinho junto à
mesa da cozinha, numa irrequieta quietude. Daí a pouco, sentiu que a
movimentação parara e, cansado, dormiu ali mesmo, a cabeça reclinada entre os
braços em cima da mesa, com receio de que o corpo estranho se assustasse e
entrasse em movimento...
No outro dia, bem cedinho, fez a primeira visita ao médico:
- Doutor, tem um bicho dentro de mim fazendo o maior carnaval. Pelo
amor de Deus, isso tá me dando uma terrível agonia! Dá um jeito, doutor, de tirar
a coisa de dentro de mim. Já não aguento mais...
O médico, surpreso com o inusitado, colocou o estetoscópio nos ouvidos
e passou-o por todo o corpo do angustiado cliente, tentando ouvir algo de
anormal, tudo aparentemente normal. Com um sorriso meio maroto nos lábios,
sem levar a coisa muito a sério, disse ao paciente que aquilo era uma
autossugestão ou, na pior das hipóteses, uma distensão natural de músculos num
momento de repouso. O homem, meio sem se convencer, aceitou a ponderação do
médico e, sentindo a necessidade de acreditar, tentou esquecer o episódio,
aquilo não era nada de grave, onde já se viu alguma coisa caminhar acima e
abaixo no corpo de alguém?
À noite, tentava dormir quando percebeu, com clareza, que algo com
muitas patas andava dentro de si! Com os pés descalços, levantou da cama e
passou a andar pela casa, impaciente. De repente, deu um espirro e, de
imediato, de dentro de si, garganta acima, chegou às suas narinas um cheiro
forte de... barata! Teve, então, a certeza de que uma nojenta e miserável de
uma barata habitava nele! O pior era que a desgraçada se movimentava com
desenvoltura, cada vez mais íntima do seu corpo: passava por trás dos olhos,
por cima do fígado, provocando cócegas. Fizera do seu estômago uma piscina onde
mergulhava à vontade, sem cerimônia e, naturalmente, sem pedir licença...
Ficaram cada vez mais frequentes, as consultas. Sem saber mais que
exame fazer para detectar o que incomodava tanto o paciente, o médico já o
recebia de má vontade. Radiografias, ultrassonografias, tomografias foram feitas sem resultado prático. Com
certeza, aquele era um nosomaníaco, via doenças onde elas não estavam.
O homem, por sua vez, de tanto falar da sua hóspede ganhou o apelido de
“Baratão” e ouvia, com frequência, piadinhas tipo “Cara, te acho o maior
barato!”. Por causa do seu problema, ninguém mais o levava a sério. Até mesmo
dentro de casa quando, na madrugada, levantava várias vezes tentando minimizar
o incômodo, ouvia a mulher pigarrear, impaciente e dizer:
“-Vê se você tem paz e dá paz aos outros, homem... Como se não bastassem seus roncos e suas
fraudulências, você ainda inventa esta merda desta barata, acendendo a luz toda
hora... Que inferno!” - e ficava revirando-se na cama, irritada, sem conseguir
dormir. Ninguém acreditava nele e, lá dentro, o inseto, cada vez mais
ambientado, movia-se rapidamente.
Uma tarde, caminhava no centro da cidade, quando, esbaforido, resolveu
atravessar a rua, sem usar faixa de segurança ou aguardar o sinal fechar. No
meio da travessia, sentiu algo parecendo morder, gulosamente, seu coração.
Assustado, parou de andar e levou a mão ao peito. Perdeu o equilíbrio e caiu no
meio do asfalto, sendo atropelado por um carro dirigido por alguém que tinha
pressa. Teve morte instantânea...
No velório, realizado numa das salas de uma funerária, todos
comentavam sobre a causa da morte, o aparente problema psicológico que
acometera o defunto. À noite, paulatinamente, os grupos se formavam em torno
dos bules de cafezinhos, as madames reunidas, sentadas nos bancos do lado de
fora da sala, “tricotando” a vida alheia, ficando o defunto sozinho.
Na solidão da noite, o inseto, estranhando a esquecida inatividade do
corpo que habitava, instintivamente sentiu que algo de errado acontecia. Resolveu explorar o mundo exterior, emergindo do seu habitat.
Aflorou pelo nariz do morto e foi explorar o ambiente. Viu uma única pessoa na
sala do esquife. Era uma serviçal da funerária. A moça, de imediato, percebeu o
pequeno inseto andando por cima das flores que ornavam o peito do cadáver.
Largou a bandeja, pegou a sandália, mas a barata foi mais rápida: saiu voando
para o velório vizinho, escapando da agressão.
Ao penetrar no cômodo, o bichinho viu uma velha, rosto virado para
cima, a boca escancarada, roncando alto, num canto da sala onde estava um
esquife. Espavorida, em fuga, a barata procurou proteção na boca enrugada,
momentos antes da serviçal chegar ao ambiente e encontrar uma velha que tossia
muito, tentando escarrar, a mão na garganta. Sem desconfiar do destino do bichinho,
deixando de lado a perseguição, a mulher socorreu a anciã que alegava ter
engasgada com a própria saliva. Após acalmar a mulher, foi buscar água para que
esta tomasse e, ato contínuo, após uma rápida busca no ambiente, saiu à procura
do inseto. A velha ficou sozinha, pigarreando e sentindo cócegas no peito.
Bêbada de sono, porém, voltou a dormitar um sono intranquilo.
Lá dentro do velho corpo, o inseto que sempre abandonava a moradia
quando sentia falta de agitação e sons, sentiu-se em segurança. Embora
estranhando os movimentos mais lentos de agora, à vontade e levantando uma das
múltiplas patas, cofiou as antenas. Daí a pouco, já ambientada com os novos
sons e pulsações, resolveu entrar em movimento. De maneira sorrateira e
desconfiada, começou a movimentava-se com alguma desenvoltura. Cada vez mais
íntima do novo corpo, era hora de explorar o novo habitat...
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