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FOTO OFICIAL DO ENCONTRO

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domingo, 15 de setembro de 2019

QUANDO A CHUVA PASSAR

Jean Parente
Santanopolitano
          Era uma manhã como outra qualquer. Estava sentado num banco de cimento na área externa do meu colégio, aguardando a primeira aula começar. Não era um bom lugar para sentar, mas era o único que tinha. Acredito que era pela resistência dele em ficar num espaço aberto recebendo sol e chuva, e também para evitar que quebrassem facilmente, pois alguns alunos adolescentes não tinham muitos cuidados em utilizá-los, sentando, deitando, ficando em pé sobre ele, e até improvisando como uma pequena mesa de tênis de mesa.
          Enquanto aguardava, observei um colega de sala que acabava de chegar, o qual sempre me chamava a atenção pelo jeito de andar com os pés voltados para fora exibindo os sapatos pretos vulcabrás, motivo pelo qual alguns o provocavam chamando-lhe de dez para às duas, comparando com a posição dos ponteiros de um relógio quando marcava esse horário, e, um guarda-chuva preto que sempre levava na mão. Era impressionante, fizesse chuva ou sol ele sempre o levava. Nunca o vi sem ele. Parecia um bichinho de estimação, pelo apego e cuidado que tinha, fazendo até que outros colegas o perturbassem, sem que ele se importasse com isso, e tratando todos com a maior educação e gentileza, justificando que era melhor prevenir do que remediar.
           Ele era um adolescente meio esquisito, que se vestia e se comportava como uma pessoa mais velha. O seu jeito de falar, de se vestir e de agir era sempre de uma pessoa com mais idade, fazendo com que os colegas e até mesmo os professores algumas vezes o provocasse chamando-o de senhor. Ele percebia a ironia, mas retribuía com um leve e amigável sorriso, desafiando a todos com o seu jeito pacato de ser. 
          Confesso, que algumas vezes me incomodava com a situação, por não entender como uma pessoa tão amiga, tímida e respeitadora fosse provocada e humilhada, por ter um jeito diferente de ser. Era incompreensível para mim, que ficava em silêncio observando, analisando e me fechando em meus pensamentos, já que me identificava com ele na timidez e na discrição, fazendo com que o meu coração disparasse e o meu rosto ficasse quente, esperando nunca não passar por aquilo em que estava presenciando.
          Apesar de tudo, esse meu colega parecia estar sempre de bem com a vida, cumprimentando a todos por onde passava, e, distribuindo um discreto sorriso. Era difícil ele parar nos grupinhos que se formavam pelo pátio do colégio nos momentos dos intervalos, pois, acredito, que seria uma forma de não ouvir as provocações. Geralmente, ele fazia um lanche na cantina, e voltava para a sala de aula, onde folheava alguns livros e ficava escrevendo algumas coisas num pequeno caderno de capa preta, que parecia uma espécie de diário, sendo misterioso para mim, mas acredito que era um amigo e confidente para ele, pois o guardava com muito cuidado e carinho, e, sempre conferia olhando para um lado e para o outro, se tinha alguém por perto de olho nos seus segredos. Assim eu acreditava.
          Uma certa vez em que  estava sentado sozinho no desconfortável banco de cimento, surpreendentemente o meu colega sentou-se ao meu lado e me desejou um bom dia confirmando o meu nome. Fiquei surpreso, pois apenas nos cumprimentávamos com um olhar e um discreto sorriso, já que era novato no colégio e estávamos ainda no início do ano, e, nunca tivemos a oportunidade de uma conversa ou aproximação.
          Mas, surpresa maior, foi descobrirmos que morávamos na mesma rua, só um pouco mais distante, nos deixando mais a vontade para uma conversa amigável, e ainda, com toda a  sinceridade, firmeza e confiança, me revelar que só parou para conversar comigo porque eu era um dos únicos que não sorria quando os colegas o  humilhavam. Fiquei parado e sem saber o que dizer, procurando palavras que justificassem o meu silêncio, quando, finalmente ele interrompeu os meus pensamentos dizendo que era muito observador, e que apesar de tudo não tinha raiva ou rancor de ninguém. Estava tudo bem para ele.
          Apos uma rápida conversa, já que tínhamos que entrar para a sala de aula, e revelar-me que  morava com os pais e uma irmã, que gostava de livros de histórias antigas da humanidade, de escrever tudo o que acontece em sua vida, e que detestava qualquer tipo de esporte, nos levantamos para seguirmos para a sala, onde iria começar a próxima aula.
          Eu não falei quase nada durante os minutos em que conversamos, apenas ouvi. Senti que a necessidade era mais dele, e o deixei falar. Acho que ele precisava mais do que eu, pois raramente  tinha visto conversando com alguém. Ele sempre preferia ficar afastado dos grupos e das conversas, somente participando involuntariamente quando se aproximavam dele para as provocações, tentando ser simpático, mas revelando o constrangimento no rosto e nas orelhas que ficavam avermelhados de vergonha. 
          Os dias foram passando, e nos aproximamos mais, estabelecendo uma relação de amizade e confiança, o qual pude perceber o quanto era inteligente, formal e perfeccionísta. Ele gostava de tudo certinho, e realmente se comportava como um homem mais velho do que a idade que tinha, mantendo o hábito do seu avô de sempre levar o guarda- chuva onde quer que fosse. Assim me confidenciou.
          Até que um dia, inesperadamente, me convidou para conhecer a casa onde morava, e pude conhecer a sua mãe e a sua irmã, que me receberam com surpresa e educação. Acho que os pais eram separados, pois não vi o pai, e não foi feito qualquer comentário envolvendo o nome dele. Era uma casa simples, com a entrada pela lateral, onde ficamos numa pequena varanda que exibia uns móveis antigos, e que chamava a atenção pela quantidade e a beleza das flores cuidadosamente organizadas num pequeno jardim. 
          Sentamos e conversamos por alguns instantes, e não pude deixar de perceber a inquietação no olhar da mãe do meu amigo, e uma certa ansiedade em sua irmã, as quais não conseguiam disfarçar a surpresa da minha presença, parecendo que não era muito comum aparecer visita por lá por parte do seu filho, que também demonstrava ansiedade, mas com uma pequena e eufórica alegria.
          Mas, apesar de tudo, foi uma conversa muito agradável, onde sorrimos em alguns instantes, me fazendo sentir importante para aquela família naquele momento. Talvez tivesse acostumado com a alegria e agitação da minha casa, onde os meus sete irmãos homens movimentava e bagunçava num entra e sai sem limites, nunca deixando o ambiente em silêncio, e, achei um clima triste na casa do meu misterioso amigo, mesmo com o insistente canto de um pássaro que estava em uma gaiola próxima a nós, que parecia querer chamar a nossa atenção pelas repetidas vezes que cantava o Hino Nacional Brasileiro. O bicho, num desespero, cantava sem intervalos que acredito que nem dava para respirar, provocando uma pausa em nossa conversa para admirá-lo, e que terminou servindo para diminui a tensão da visita.
          Desse modo, após nos despedirmos, voltei andando para casa pensando na família do meu novo amigo, e me justificando que as famílias são diferentes, cada uma com os seus problemas e seus mistérios, e que no final todos ficam bem. Dessa forma, apressei o meu passo, e fui cuidar dos meus afazeres, tentando tirar os maus pensamentos da cabeça.
          No dia seguinte, lá estávamos novamente na sala de aula de ouvidos atentos as explicações dos professores, que não admitiam conversas durante as aulas e exigiam total atenção por parte dos alunos, que por sua vez retribuiam com todo o respeito e admiração. Era um período na década de 70, em que os alunos sabiam da importância do conhecimento dos professores, os quais recebiam total apoio da direção do colégio, e também dos pais. Estes, pela confiança adquirida nos professores, entregavam a eles todo o processo de educação para com os seus filhos, que quando praticavam qualquer ato de indisciplina, tinham que enfrentar os educadores e familiares, os quais, juntos, encontravam uma forma de educá-los, não deixando ninguém traumatizado com isso.
          Finalmente, já estávamos chegando próximo ao final do ano, onde durante alguns meses tentei aproximar o meu misterioso e introvertido amigo aos meus outros amigos e colegas, mas sempre percebia que ele oferecia uma certa resistência às novas amizades, falando o necessário, e evitando qualquer tipo de brincadeiras, as quais o deixavam nervoso e inquieto, estimulando até alguns colegas a provocá-lo, fazendo-o faltar algumas aulas com a justificativa de que estava doente. Até que um dia, ele não apareceu, e se ausentou por quase uma semana. Achei até que fosse mais uma daquelas reações para evitar o contato com os colegas e se isolar no seu mundo misterioso, e decidi não procurá-lo, respeitando a sua privacidade.
          Mas, infelizmente, não foi, e logo ficamos sabendo o motivo da sua ausência por uma coordenadora que veio até a nossa sala trazendo uma notícia que nos deixou perplexos. Ele, tragicamente, matou a tiros a própria mãe, e logo depois atirou contra a própria cabeça. A irmã não estava no momento em casa, e só ficou sabendo quando foram chamá-la no trabalho. Foi uma tragédia. Ficamos todos abalados, sem reação, nos olhando e tentando entender o que levou o nosso colega a cometer tal ato. 
          Alguns colegas, os que mais perturbavam o nosso amigo misterioso, sentaram-se no chão aos prantos, com as mãos nos rostos, num desespero que contagiou a todos, tornando um clima de sofrimento, talvez arrependimento, e um interminável silêncio tomou conta da sala, fazendo com que até  alguns saíssem para tomar um pouco de ar,  buscando uma resposta para a situação, já que poucos ou quase nenhum sabia da vida dele, o que me fez depois, passar algumas vezes pela frente da casa onde morava em busca de informações do que havia ocorrido, e também para saber de como estava a sua irmã. Mas, foi em vão, pois estava sempre fechada e não quis ser indelicado fazendo perguntas aos vizinhos.
          E assim, entramos de férias, e cada um seguiu o seu caminho, levando consigo a lembrança do colega do guarda-chuva preto que um dia passou por nós e talvez nem tenhamos percebido, e, que parecia estar sempre esperando que a chuva passasse por ele, para que pudesse exibir o seu "companheiro" protetor, numa aventura que somente ele compreendia.
          No entanto, acreditando que isso tudo teria chegado ao fim, alguns anos depois fui surpreendido quando saía de casa por uma visita inesperada. Quase não acreditei, ficando sem palavras e visivelmente surpreso, pois acreditava que esta pessoa tivesse morrido. Era, inacreditavelmente, o meu misterioso amigo com o seu guarda-chuva preto, aparentemente mais magro, com uma imensa cicatriz ao lado da testa junto com uma pequena deformação, e tentando com um tímido sorriso me cumprimentar. Não pude e nem deu tempo para falar nada, pois com poucas palavras e olhando sempre para o chão, ele me revelou que tinha feito uma loucura contra a mãe e a ele mesmo, e que milagrosamente sobreviveu numa oportunidade em que Deus lhes deu, apesar de tudo, onde, após alguns anos em um presídio numa intensa solidão e arrependimento, estaria tentando resgatar a sua vida novamente, sabendo que levaria para sempre o sentimento de culpa pelo que fez.
          Assim, sem mais palavras, apertou a minha mão como um agradecimento, olhou ligeiramente em meus olhos, me abraçou fraternamente, e se afastou vagarosamente segurando o seu inseparável guarda-chuva preto, me deixando com dúvidas e perguntas que ficariam para o resto da minha vida em minha cabeça, despertando o sentimento de compaixão por aquele ser humano, que em sua fragilidade não conseguiu controlar um terrível surto depressivo que afetaria a sua vida para sempre.
          Nunca mais o vi. Transcorrido mais de quarenta anos, nunca mais tive notícias dele, e dos poucos colegas da época que ainda encontro pelos caminhos da vida, nenhum comenta ou toca no assunto. Talvez por esquecimento, ou simplesmente porque não permitiram que momentos trágicos e tristes fizessem parte de suas lembranças, jogando para o esquecimento um amigo talvez inexpressivo, mas que se tornou inesquecível nas coisas da vida.

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