ONDE ESTÁ PADRE JOSÉ
[...] O nosso personagem está sumido
da história. Também, depois daquela ameaça de prisão, feita pelo coronel, até
eu saía da cidade. Vamos falar desse assunto [...]
NAQUELE DIA EM QUE o coronel o ameaçou de
prisão, padre José teve mesmo que sair da cidade. Pegou suas roupas, um resto
de dinheiro que tinha e foi para a capital se encontrar com o Arcebispo de
Olinda, para relatar o que estava acontecendo na sua freguesia. Ele sabia que não
poderia abandonar nunca a sua paróquia. Naquele tempo, padre não andava com
muito dinheiro, era diferente de hoje que acumulam riquezas por trás de um
comércio religioso, não são todos, mas alguns conseguem fazer fortunas e chegam
a acumular património em nome de um voto de pobreza.
Numa manhã de sábado, coronel
Salustiano saiu para a zona rural, com a finalidade de verificar como estavam
as obras de uma estrada vicinal que ele havia mandado abrir no intuito de
diminuir a distância de um pequeno distrito até a sede do município. Encontrou
com o Sr. Zacarias Mão de Onça na estrada principal e parou pra conversar,
coisa que sempre gostou de fazer. Acomodaram-se debaixo de uma jaqueira e o Sr.
Zacarias iniciou a conversa.
- E o coroné, como está se
sentindo prefeito?
- Seu Zacarias, teria sido
melhor ficar como era antes, pelo menos eu estava mais sossegado.
- E D. Emengarda mais os
meninos, como vão indo?
- Graças a Deus tá tudo em
ordem. Os meninos estão crescendo. Deoclécio e Tibúrcio são dois homens...
Puxaram ao pai e Esmeraldina uma moça linda, fez 15 anos agora.
Seu Zacarias, que conhecia
bem os filhos do coronel, limitou- se a ouvir apenas.
O coronel então retribuindo a
gentileza, perguntou sobre a família do Zacarias:
- E a sua família? Como está?
- Tá tudo bem. Os meninos tão na capitá. O mais
veio tá estudando pra ser dotô, e a moça foi este ano pra lá, qué estudá
também. Essas modernagem de hoje é diferente da gente. Na nossa época, ou a
gente pegava na enxada pra trabalhá ou morria de fome. Hoje o mundo tá mudado.
- É verdade seu Zacarias, hoje tá mais difícil
controlar os filhos da gente. Eles crescem e vão logo engrossando o pescoço.
Tibúrcio mesmo quase que não fica em casa. Ele, como é muito amigo do filho de
Florentino farmacêutico, está sempre na cidade, dorme por lá.
Seu
Zacarias, com já tinha ouvido alguns comentários sobra a boiolagem de Tibúrcio,
comentou:
- Esse negócio de filho dormir fora de casa é
meio perigoso, o senhor não acha, coroné?
- É perigoso, sim. Tibúrcio mais o filho de
Florentino farmacêutico sabem se defender, ali são dois cabra-macho. Vivem
juntos porque têm mulher no meio.
Seu
Zacarias, espantado com a inocência do coronel Salú sobre a viadagem de
Tibúrcio, responde:
- Será que tem mulher nisso tudo?
- Tem, com certeza. Outro dia, Tibúrcio chegou
em casa com a maleta que sempre carrega, e num descuido dele eu consegui pegar
a tal maleta pra ver o que tinha dentro.
- E o que o senhor encontrou, coroné?
- Aqui pra nós, encontrei até calcinha de
mulher dentro da maleta. Esse meu filho não dá moleza pra mulher. Imagina o
senhor, tinha roupa de mulher dentro da maleta dele, tinha um batom, pó de
arroz... Devia ter feito uma farra tão grande que se esqueceu de devolver a
roupa da mulher que estava com ele.
Seu
Zacarias começou a rir muito e mudou logo de assunto.
- Mas o que traz o senhor por essas bandas?
- Vim ver como andam as obras da estrada.
- Tá meio devagar, coroné...
- Devagar como? Eu quero inaugurar esta estrada
no mês que
- Nagura não, coroné... Ta parada na beira do
açude mode uma cerca que o homem não deixa tirar por nada.
- Que homem, seu Zacarias?
- O homem que veio morar naquela casa que tava
pra cair, lembra?
- Quem é o homem?
- Não sei bem o nome dele, mas vejo o povo
chamá ele pelo pelidi de padre. É um homem letrado, fala bonito...
O
coronel Salú ficou curioso pra conhecer esse homem. Levantou-se e foi logo se
despedindo do seu amigo Zacarias.
- A prosa tá boa, mas tenho que cumprir o meu
dever de prefeito. Vou seguir inspecionando as obras. Foi bom conversar com o
senhor.
- Dá lembrança pro pessoal de casa. Qualquer
dia desses vou fazer uma visita.
- Vá mesmo... Apareça.
Entrou
no Jeep e saiu devagar, olhando tudo com muito cuidado. De vez em quando,
parava, descia e sonhava em fazer uma boa obra, quem sabe mais uma estrada, um
açude, uma aguada...
De
repente, avistou a casa onde morava o homem que estava impedindo da estrada
passar. Acelerou pra chegar mais rápido e parou à porta da casa. Desceu, olhou
em volta. Estava tudo fechado. Circundou todo o terreno. Viu que nos fundos
havia algumas galinhas ciscando, um cesto de palha com uma galinha chocando
ovos, algumas bromélias servindo de cerca demarcando terreno, duas peças de
roupas lavadas e penduradas na cerca de arame farpado. Preso no ripão do
telhado, na sua parte mais baixa, havia uma lata de óleo de cozinha com um
pouco de terra dentro e estava plantado um pé de hortelã miúda. O coronel se
lembrou de ter visto isso antes, na casa de alguém. Sorriu, tirou uma folha e
levou até a boca. Era hortelã mesmo. Pela fresta da janela, olhou para dentro
da casa. Não deu pra ver muita coisa. A cozinha era escura e como tudo estava
fechado pouco se enxergava.
Entrou novamente no Jeep e
saiu devagar. Não percebeu em momento algum que estava sendo observado pelo
morador da casa.
No
dia seguinte, manhã de domingo, o coronel estava na cancela da sua fazenda e
avista ao longe um homem que vem na sua direção. O coronel fica parado até que
o homem se aproxime mais. Quando viu que não o conhecia, virou-se e entrou
fechando a cancela. Assim que resolveu voltar pra casa, escutou o homem lhe
chamar.
Esperou
mais um pouco e o homem se aproximou. Era um sujeito com um olhar conhecido,
mas a barba grande impedia que o coronel o reconhecesse.
- Coronel Salustiano. Bom-dia!
O
coronel olhou para o homem e respondeu:
- Bom-dia! Posso ajudar o senhor?
- Pode sim. Ontem o senhor estava rondando a
minha casa. Queria falar comigo?
- Queria sim. Queria pedir ao senhor pra
retirar aquela cerca que está impedindo a passagem da estrada que vai ligar o
distrito até a cidade.
- Aquela cerca me pertence, coronel.
O
coronel foi aos poucos reconhecendo a voz do padre José. Num ímpeto, o coronel
se aproximou do padre e lhe deu um abraço.
- Padre José... O senhor é um louco. Eu não
mandei o senhor sair da cidade?
- Mandou sim, coronel, mas a minha obrigação,
como pastor do meu rebanho me fez voltar, além do mais, o que um padre sem
dinheiro e sem paróquia pode fazer longe do seu rebanho?
- Vamos entrar. Emengarda vai ficar feliz em
ver o senhor por aqui.
No
caminho da cancela até a casa, o padre quis saber sobre a revolução.
- Aí coronel? Como vão os militares?
- Ainda estão prendendo gente. Aqui na cidade
até que pararam mais. O senhor escapou por pouco.
- Graças ao senhor. E quando vão embora daqui?
- Eu soube que vão construir um batalhão de
Infantaria em Parnamirim, só assim saem daqui e desocupam a escola nova.
Chegaram
à porta da casa. O coronel entra e chama D. Emengarda.
- Temos visita para o café da manhã. Mande
Victória colocar mais um prato.
D.
Emengarda vai até a varanda receber o visitante e de pronto reconhece o padre
José,
- Padre José!... Que alegria ter o senhor de
volta! Entre... Venha tomar um café com a gente.
- Ainda não estou de volta. Isso vai depender
da minha segurança em não ser preso.
O
coronel se senta e depois que o padre fez a oração em agradecimento à refeição
da manhã, o coronel disse:
- Padre José, o senhor tem algum envolvimento
com os comunistas?
- Depende do que o senhor chama de comunista.
- Olha, Padre, pelo que está desenhado por
esses militares, comunista é todo aquele que se coloca contra esse estado de
coisas que vem acontecendo.
- Não entendi coronel.
- Por exemplo. O senhor é um homem que fala
bonito, sabe muitas coisas, é um intelectual e inteligente. Pra eles, homem
inte-ligente é comunista, é subversivo, está contra eles... Entendeu?
- Mas Deus deu ao homem o livre arbítrio. Nós
não somos obrigados a acreditar nem em Deus. Crer ou não crer é uma opção da
consciência humana.
- Mas o que eu quero dizer pro senhor, é que
eles querem que a gente pense como eles.
- Coronel, o homem é livre pra pensar, pra
amar, pra sonhar. Deus deu ao homem a coisa mais perfeita. A liberdade.
- Olha, padre... Eu vou conversar com o capitão
Duarte sobre a sua volta. Vou tentar convencer que o senhor tem que ficar aqui,
mas tenho a certeza que ele vai chamar o senhor pra ter uma conversa. Pelo
amor de Deus, nunca diga que foi eu quem mandou o senhor fugir daqui naquele
dia.
- Fique tranquilo, coronel, nunca saberão quem
foi que me protegeu.
Terminado o café, o coronel
levou o padre José de volta até a sua casa provisória e voltou à sua rotina.
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