Dadas essas explicações sobre a
verdadeira Maristela que ninguém conhecia, voltemos ao cursinho de vestibular
que ela frequentava. Na segunda semana desde que as aulas tinham começado,
apareceu na sala um rapaz alto e magro que usava óculos. Chegou um pouco
atrasado. Somente achou uma cadeira vaga numa das primeiras filas. Todo mundo
olhou para ele. Ficou um pouco vermelho e sentou-se. No meio da aula, o
professor fez uma pergunta. De início, ninguém respondeu.
- Será que ele precisa mesmo deste
cursinho?
Maristela sempre admirou as pessoas
inteligentes. Procurou se aproximar de Josiel. Em pouco tempo, estavam amigos.
Na convivência do dia a dia, mesmo mantidos os contados nos limites do respeito
mútuo e sem maiores intimidades, ela foi descobrindo outras facetas do novo
colega. Além de muito estudioso e inteligente, ele não conversava apenas sobre
assuntos ligados às disciplinas que cursavam. Acostumada a ouvir o papo
bastante imaturo e fútil da rapaziada do Farol da Barra, Maristela afinai
encontrou alguém que a levava a pensar e raciocinar sobre outros temas que
antes nunca nem havia cogitado.
- A
civilização de um povo não se mede apenas pela sua riqueza material. Povo
civilizado é, sobretudo, aquele que cultiva todas as espécies de artes e que
conserva e amplia seu património cultural - disse Josiel um dia num intervalo
de aula, alongando-se depois no assunto.
As constantes dissertações do
"Perna" (o apelido iniciai - "perna de avestruz" -foi
considerado longo demais, sendo abreviado) fazia crescer a admiração de
Maristela pelo amigo. De outra feita, ela, toda contente, mostrou-lhe o último
disco que acabara de comprar, contendo somente músicas americanas de
"rock". Ficou estarrecida com a reação de Josiel:
- Não
sei como você gosta dessas porcarias importadas. Na maioria, é mais barulho do
que música. A gente, que é jovem, deve prestigiar a música popular brasileira.
Devemos ser autênticos, patriotas, valorizar o que é nosso.
Passou, então, a falar de Gil, Caetano,
Chico Buarque, Milton Nascimento e outros "monstros sagrados" da MPB.
No fim, Maristela estava até com vergonha de ter feito aquela aquisição.
Prometeu ouvir com mais atenção os ritmos nossos, como o samba, e comprar
discos de compositores brasileiros.
Josiel surpreendeu novamente sua
simpática amiga no dia em que bravejou contra as chamadas "injustiças
sociais". Maristela engasgou e não soube responder quando ele lhe atirou a
pergunta:
- Você pensa que a pobreza existe porque
Deus quer? Nada disso. Você, filhinha de papai burguês, ignora muita coisa que
há neste mundo. Um dia ainda vou lhe esclarecer sobre essas questões.
Começou até a correr o boato que Perna
era comunista. Maristela pensou em se afastar dele por causa daquelas ideias
políticas "esquisitas". A colega Cristina a tranquilizou,
argumentando:
Decorridos
dois meses, a amizade entre Josiel e Maristela estava cada vez maior. Iam
sempre à Biblioteca Pública, no bairro dos Barris, onde permaneciam horas e
horas estudando e conversando. As quatro meninas freguesas da carona passaram a
fazer "onda" insinuando um possível namoro entre os dois. A jovem
alvo dos comentários assim descartava:
- É
apenas amizade, gente. Aquele magrelo de óculos, metido a intelectual, não faz
meu tipo.
A bem da verdade, no entanto, a coisa, de
ambos os lados, evoluía para tornar-se algo mais além de uma simples amizade.
Um dia estavam juntos resolvendo um problema de Física quando o papel acabou.
Faltava uma única conta. Josiel, com naturalidade, segurou a mão esquerda de
Maristela e fez a conta na palma. Terminado o cálculo, olhou o resultado, mas
não soltou logo aquela mão macia da colega. Por fim, perceberam que estavam de
mãos unidas por alguns momentos, apesar de já saberem a solução do problema.
Josiel ficou vermelho, como era de costume nos instantes em que sentia forte
emoção. Sorriram um para o outro. Ainda de mãos dadas, o Perna - num esforço
enorme para vencer a timidez - tentou falar:
- Você...
- e engasgou.
- Você
o quê? Faie sem medo.
Maristela disse isso percebendo que seu coração batia mais forte.
Josiel, reunindo suas últimas forças de
uma coragem que não sabia de onde veio, soltou, de repente, de uma forma muito
desconcertada:
- Você
quer namorar comigo?
Já dissemos que Maristela era muito
cotada. Receber declarações de amor se tornara uma constante em sua vida.
Contudo, jamais nenhum pretendente foi assim tão direto no assunto logo de
início. Aliás, essa estória de falar para namorar estava fora da moda há muito
tempo. "Uma caretice", diziam. O rapaz interessado alimentava uma
conversinha mole por alguns dias-até que, de uma hora para outra, o romance
"pintava", quase sem sentir.
Apesar da cafonice do desajeitado Perna,
a sua eleita não estranhou seu jeitão antiquado. Pelo contrário, ficou
emocionada com uma declaração simples, "quadrada", mas dita de forma
tão sincera e espontânea. Para não dar a entender, de logo, que também gostava
muito do magro, encenou uma pequena resistência:
- Mas, Josiel, nós somos somente bons
amigos. Será que dá
certo?
Recebeu como resposta:
- Maristela,
acho que já é tempo de a gente acabar com essa estória de que somos apenas
amigos. Descobri que estou apaixonado por você. Sinto também que você não é
indiferente a essa paixão. Eu gosto de ser autêntico. Vamos ser autênticos?
Houve um silêncio de alguns minutos. Foi
o suficiente para Maristela fazer desfilar em sua mente um montão de
pensamentos. Concluiu que hoje suas ideias não eram as mesmas em relação
àquelas em que se agarrou após o trauma. O imoral primo Tom e Josiel - agora
tinha a certeza - são pessoas de dois mundos completamente diferentes. Ali,
diante dela, estava alguém que teve oportunidade de conhecer bem de perto. Não
achava que sentia amor por ele. "Ainda não" - completou em
pensamento. Mas Josiel lhe inspirava confiança. Podia entregar-se a ele. O
verdadeiro amor - ela acreditava - viria depois, com toda certeza. E disse,
afinal:
- Não
custa nada a gente fazer uma tentativa; né?
Josiel, ou melhor, o Perna (o apelido
terminou pegando) dizia aos colegas que era de Feira de Santana. Nesta cidade,
estudou vários anos. Era natural, porém, do vizinho município de Santa Bárbara,
onde ficava a fazenda do velho Juvenal, seu pai, um viúvo semianalfabeto.
Frequentando o colégio, em Feira, conheceu um pessoal que fazia teatro. Chegou
a trabalhar uma vez como ator, sem ter revelado muito jeito. A convivência com
a turma de teatro- que reunia alguns ditos "intelectualizados" e
outros tantos "politizados" - exerceu forte influência em sua
formação. Daí o gosto pelas artes e o conhecimento de ideias políticas
avançadas. Não tinha boas relações com o pai. Este, todavia, apesar de
carrancudo, nunca lhe faltou com o mínimo de dinheiro para sustentá-lo nos
Transcrito da REVISTA DA ACADEMIA FEIREJSE DE LETRAS - 2021 ANO XV-Nº 11
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