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FOTO OFICIAL DO ENCONTRO

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quarta-feira, 1 de junho de 2022

A PRIMEIRA VEZ - II

RAYMUNDO ANTÔNIO CARNEIRO PINTO


    No princípio, Maristela passou a achar que todos os homens do mundo eram iguais a Tom, ou seja, umas bestas que apenas se deixavam levar pelo instinto e que só pensam em sexo. Restabelecida a saúde, voltou a raciocinar como mais calma e começou a indagar- se: "por que a humanidade dá tanto valor ao sexo?" Daí em diante, dedicou grande parte de seu tempo disponível à leitura de revistas, livros, enciclopédias; enfim, tudo que encontrava abordando assuntos sexuais. Nunca mais namorou. Evitava contatos mais íntimos com rapazes. Mas compensava suas reservas em relação ao sexo oposto contando uma série de mentiras sobre aventuras amorosas. As estórias vinham sempre entrecortadas de observações teóricas a respeito de experiências sexuais.

Dadas essas explicações sobre a verdadeira Maristela que ninguém conhecia, voltemos ao cursinho de vestibular que ela frequentava. Na segunda semana desde que as aulas tinham começado, apareceu na sala um rapaz alto e magro que usava óculos. Chegou um pouco atrasado. Somente achou uma cadeira vaga numa das primeiras filas. Todo mundo olhou para ele. Ficou um pouco vermelho e sentou-se. No meio da aula, o professor fez uma pergunta. De início, ninguém respondeu.

    O magrelo novato (logo um engraçadinho pôs o apelido de "perna de avestruz"") levantou o braço, respondendo à questão formulada com a maior segurança. Na semana seguinte, Josiel - era assim o nome do magro - já se tornara uma figura conhecida. Era o principal "CDF" da turma ou um "nerd" (segundo os que gostavam de termos em inglês). Alguns chegaram até a comentar:

- Será que ele precisa mesmo deste cursinho?

Maristela sempre admirou as pessoas inteligentes. Procurou se aproximar de Josiel. Em pouco tempo, estavam amigos. Na convivência do dia a dia, mesmo mantidos os contados nos limites do respeito mútuo e sem maiores intimidades, ela foi descobrindo outras facetas do novo colega. Além de muito estudioso e inteligente, ele não conversava apenas sobre assuntos ligados às disciplinas que cursavam. Acostumada a ouvir o papo bastante imaturo e fútil da rapaziada do Farol da Barra, Maristela afinai encontrou alguém que a levava a pensar e raciocinar sobre outros temas que antes nunca nem havia cogitado.

- A civilização de um povo não se mede apenas pela sua riqueza material. Povo civilizado é, sobretudo, aquele que cultiva todas as espécies de artes e que conserva e amplia seu património cultural - disse Josiel um dia num intervalo de aula, alongando-se depois no assunto.

As constantes dissertações do "Perna" (o apelido iniciai - "perna de avestruz" -foi considerado longo demais, sendo abreviado) fazia crescer a admiração de Maristela pelo amigo. De outra feita, ela, toda contente, mostrou-lhe o último disco que acabara de comprar, contendo somente músicas americanas de "rock". Ficou estarrecida com a reação de Josiel:

- Não sei como você gosta dessas porcarias importadas. Na maioria, é mais barulho do que música. A gente, que é jovem, deve prestigiar a música popular brasileira. Devemos ser autênticos, patriotas, valorizar o que é nosso.

Passou, então, a falar de Gil, Caetano, Chico Buarque, Milton Nascimento e outros "monstros sagrados" da MPB. No fim, Maristela estava até com vergonha de ter feito aquela aquisição. Prometeu ouvir com mais atenção os ritmos nossos, como o samba, e comprar discos de compositores brasileiros.

Josiel surpreendeu novamente sua simpática amiga no dia em que bravejou contra as chamadas "injustiças sociais". Maristela engasgou e não soube responder quando ele lhe atirou a pergunta:

- Você pensa que a pobreza existe porque Deus quer? Nada disso. Você, filhinha de papai burguês, ignora muita coisa que há neste mundo. Um dia ainda vou lhe esclarecer sobre essas questões.

Começou até a correr o boato que Perna era comunista. Maristela pensou em se afastar dele por causa daquelas ideias políticas "esquisitas". A colega Cristina a tranquilizou, argumentando:

           - Deixe de bobagem, menina. Meu pai costuma dizer que todo cara inteligente, enquanto é jovem, gosta de assumir ideias esquerdistas. Depois de adulto, quando começa a ganhar dinheiro, isso passa.
            
            - Deixe de bobagem, menina. Meu pai costuma dizer que todo cara inteligente, enquanto é jovem, gosta de assumir ideias esquerdistas. Depois de adulto, quando começa a ganhar dinheiro, isso passa.   

  Decorridos dois meses, a amizade entre Josiel e Maristela estava cada vez maior. Iam sempre à Biblioteca Pública, no bairro dos Barris, onde permaneciam horas e horas estudando e conversando. As quatro meninas freguesas da carona passaram a fazer "onda" insinuando um possível namoro entre os dois. A jovem alvo dos comentários assim descartava:

- É apenas amizade, gente. Aquele magrelo de óculos, metido a intelectual, não faz meu tipo.

A bem da verdade, no entanto, a coisa, de ambos os lados, evoluía para tornar-se algo mais além de uma simples amizade. Um dia estavam juntos resolvendo um problema de Física quando o papel acabou. Faltava uma única conta. Josiel, com naturalidade, segurou a mão esquerda de Maristela e fez a conta na palma. Terminado o cálculo, olhou o resultado, mas não soltou logo aquela mão macia da colega. Por fim, perceberam que estavam de mãos unidas por alguns momentos, apesar de já saberem a solução do problema. Josiel ficou vermelho, como era de costume nos instantes em que sentia forte emoção. Sorriram um para o outro. Ainda de mãos dadas, o Perna - num esforço enorme para vencer a timidez - tentou falar:

- Você... - e engasgou.

- Você o quê? Faie sem medo.

Maristela disse isso percebendo que seu coração batia mais forte.

Josiel, reunindo suas últimas forças de uma coragem que não sabia de onde veio, soltou, de repente, de uma forma muito desconcertada:

- Você quer namorar comigo?

Já dissemos que Maristela era muito cotada. Receber declarações de amor se tornara uma constante em sua vida. Contudo, jamais nenhum pretendente foi assim tão direto no assunto logo de início. Aliás, essa estória de falar para namorar estava fora da moda há muito tempo. "Uma caretice", diziam. O rapaz interessado alimentava uma conversinha mole por alguns dias-até que, de uma hora para outra, o romance "pintava", quase sem sentir.

Apesar da cafonice do desajeitado Perna, a sua eleita não estranhou seu jeitão antiquado. Pelo contrário, ficou emocionada com uma declaração simples, "quadrada", mas dita de forma tão sincera e espontânea. Para não dar a entender, de logo, que também gostava muito do magro, encenou uma pequena resistência:

- Mas, Josiel, nós somos somente bons amigos. Será que dá

certo?

Recebeu como resposta:

- Maristela, acho que já é tempo de a gente acabar com essa estória de que somos apenas amigos. Descobri que estou apaixonado por você. Sinto também que você não é indiferente a essa paixão. Eu gosto de ser autêntico. Vamos ser autênticos?

Houve um silêncio de alguns minutos. Foi o suficiente para Maristela fazer desfilar em sua mente um montão de pensamentos. Concluiu que hoje suas ideias não eram as mesmas em relação àquelas em que se agarrou após o trauma. O imoral primo Tom e Josiel - agora tinha a certeza - são pessoas de dois mundos completamente diferentes. Ali, diante dela, estava alguém que teve oportunidade de conhecer bem de perto. Não achava que sentia amor por ele. "Ainda não" - completou em pensamento. Mas Josiel lhe inspirava confiança. Podia entregar-se a ele. O verdadeiro amor - ela acreditava - viria depois, com toda certeza. E disse, afinal:

- Não custa nada a gente fazer uma tentativa; né?

Josiel, ou melhor, o Perna (o apelido terminou pegando) dizia aos colegas que era de Feira de Santana. Nesta cidade, estudou vários anos. Era natural, porém, do vizinho município de Santa Bárbara, onde ficava a fazenda do velho Juvenal, seu pai, um viúvo semianalfabeto. Frequentando o colégio, em Feira, conheceu um pessoal que fazia teatro. Chegou a trabalhar uma vez como ator, sem ter revelado muito jeito. A convivência com a turma de teatro- que reunia alguns ditos "intelectualizados" e outros tantos "politizados" - exerceu forte influência em sua formação. Daí o gosto pelas artes e o conhecimento de ideias políticas avançadas. Não tinha boas relações com o pai. Este, todavia, apesar de carrancudo, nunca lhe faltou com o mínimo de dinheiro para sustentá-lo nos nos estudos. Seu grande ideal era formar-se em Economia. Por isso, sua mudança para Salvador.

        Continua: A PRIMEIRA VEZ - III (final).


Transcrito da REVISTA DA ACADEMIA FEIREJSE DE LETRAS - 2021 ANO XV-Nº 11

  

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