É comum o uso da expressão "coronelismo", com acentuado cunho pejorativo, quase sempre com o intuito de ressaltar os aspectos negativos, da ação e influência, de indivíduos ou grupos dominantes. O vocábulo nos convida a recuar no tempo, até uma sociedade desamparada, onde a lei do mais forte era a única conhecida.
Impossível não associar o coronel da Guarda Nacional à imagem de um tirano
bronco, parabellum à cintura, botas de cano longo, esporas de prata, rebenque à
mão, olhar raivoso, sempre disposto a martirizar o humilde campónio pelo mais
fútil dos motivos. Assim o encontramos descrito na tradição oral e em inúmeras
literaturas, é assim, pois, que o inconsciente coletivo costuma caracterizá-lo.
Não sem motivos. Abuso de poder, ambição desmedida e impunidade, são relatadas
como prática ordinária entre os coronéis; quase todos donos de muitas terras,
gado e gente.
Alguns destes homens ficaram conhecidos pela extrema crueldade com que
tratavam desafetos, subalternos ou até mesmo, familiares que ousassem
contrariá-los. Mas foram exceções. Em sua maioria absoluta, estes chefes
interioranos, possuindo ou não a patente de coronel da Guarda Nacional, como
tal eram tratados, graças ao respeito e liderança angariados no âmbito de suas
comunidades. Liderança esta, assentada basicamente na prática do
assistencialismo.
Diante da ausência de serviços públicos, na maioria dos municípios brasileiros,
e em virtude da baixa qualidade de vida de seus habitantes, bastava que alguém
tivesse alguns hectares de terra cultivada, acesso a três refeições diárias, um
mínimo de conforto domiciliar, algum gado bovino e rudimentos de educação, para
que fosse considerado afortunado, e de forma natural, galgado à condição de
chefe da comuna. Era, portanto, para aquele considerado o mais venturoso dos
munícipes, que recorria o miserável sertanejo ignorado pelo poder público.
O coronel substituía, de forma precária, e, muitas vezes, compulsória,
importantes instituições sociais. De vezo, desempenhava a função da autoridade
policial omissa, do juiz distante ou ausente, e do inexistente banqueiro; não
necessariamente, nesta ordem.
Inegável que havia uma troca
desigual, pois ao tempo que recebia parcos favores, o campesino emprestava
prestígio político ao coronel através do conhecido "voto de
cabresto", contribuindo assim, para maior ascensão social e política do
suposto benfeitor, ao passo que ele quase nunca saía da situação de
miserabilidade que nasceu, continuando na base desta rudimentar pirâmide
social.
Com referência aos coronéis do sertão baiano, objeto deste ensaio,
cumpre-nos resaltar que raros foram o que exerceram o poder pela força das
armas frente à parcela mais humilde e desprotegida da sociedade. Mas quando
assim agiram, foi de forma tão avassaladora, que ainda hoje essas façanhas,
quando narradas nos terreiros das roças e fazendas, em volta das fogueiras, nas
noites sertanejas prenhes de lendas e assombrações, provocam arrepios e insónia
aos ouvintes.
Um nome sempre lembrado é o de Militão Plácido de França Antunes, poderoso
e truculento coronel do vale do São Francisco, que já em idade avançada,
arrebatou para si, a bela Sancha, jovem esposa de seu vaqueiro, elegendo-a
senhora da Fazenda Caroá, reduto inexpugnável dos França Antunes.
O acaso, porém, conspirou para que Sancha fosse tomada de amores por Pedro
Costa, humilde professor, contratado por Militão para ensinar as primeiras
letras à sua linda e inculta concubina. Os rumores deste tórrido e perigoso
romance, não tardaram a chegar aos ouvidos do coronel.
Interrogada, a infiel Sancha defendeu-se alegando ser vítima de assédio,
não denunciando as investidas do educador para evitar uma tragédia. Arrebatado
pelo ciúme, mas inteiramente subjugado pela amante a quem devotava cega paixão,
Militão permitiu-se acreditar nesta versão.
Assim, satisfeitas as razões do coração, restavam as exigências do ego;
então o ódio do velho tirano voltou-se para Pedro Costa, que avisado à socapa
pela amante, saiu em fuga desesperada pelas ribeiras do rio São Francisco e
matas adjacentes. Caninamente perseguido pela jagunçada de Militão, foi afinal
capturado e conduzido à vila de Xique-Xique, distante muitas léguas da Fazenda Caroá.
Em julgamento presidido por um juiz tão aterrorizado quanto o réu, e um
Conselho de Sentença composto por amigos e familiares de Militão, foi o
professor condenado, insensatamente, à pena de morte pelo crime de sedução.
Relata-nos Wilson Lins, em seu excelente livro "O Médio São
Francisco", que no dia determinado para a execução da sentença, foram
transportadas em canoas para a pequena ilha do Miradouro, em frente à vila,
várias pipas de vinho, fogos de artifício e comida em abundância. Ali, na
presença de convidados pertencentes à aristocracia ribeirinha, foi realizado um
banquete, onde além de vitelos assados, carneiros cozidos e bebida à vontade,
foi oferecido aos convivas, o horrendo espetáculo do esquartejamento de Pedro
Costa.
Durante dias, por ordem do déspota do Caroá, ficaram expostos aos olhos
assombrados dos habitantes de Xique-Xique, as vísceras, os membros mutilados e
a cabeça empalada daquela pobre vítima do poder absolutista.
Nesta galeria de coronéis truculentos, um outro nome que sobressai pé o de
Aureliano Gondim, poderoso chefe político, proprietário de muitas terras e
garimpos na Chapada Diamantina. Aurélio da Passagem como era mais conhecido,
exercia o mandonismo, segundo relatos de contemporâneos, com crueldade
peculiar, pois costumava temperar os castigos impostos a desafetos, com pitadas
do mais autêntico humor-negro.
Conta-se que num dia de feira-livre, no povoado de Igatu, domínio e
domicílio daquele coronel, um jovem garimpeiro, recém-chegado, emitiu um
assobio malicioso ante a passagem de uma bela e desconhecida cabocla. Era filha
do temível Aurélio.
Denunciado por bajuladores, o trémulo rapaz foi conduzido por cabras
armados à presença do coronel, o diálogo ocorrido é uma peça de surrealismo:
- Intonce é você o moleque que assubiou pra minha filha?
- Deus me livre sêo coroné!
Essa atrapaiação todinha é porque eu sou muito alegre! Vivo assubiano
o tempo todo. Lá nos garimpos o povo inté me chama de Passarim!...
Nem vi que a filha de vosmicê tava de passage na minha frente...
Depois de um silêncio interminável onde parecendo absorto, Aurélio cofiava
a longa barba, e o aflito garimpeiro antevia sua terrível punição, o veredicto
foi anunciado com voz pausada e aparente simpatia.
- Já que o moço é quase um musico, então tá perdoado. Um artista merece
nosso respeito!
Ante os olhares espantados da sua cabroeira, levantou-se, atravessou a
sala, pegou o chapéu no cabide, e ao chegar à porta, conclui:
- Mas também não vamos perdera oportunidade de cunhecêa sua arte... Ele vai
ficar aí, assubiando procês, que eu vou inté a fazenda vê os
pastos e volto. Se parar de assubiar um minuto que seje... Cortem
o beiço dele.
Dizem, que ao retornar já quase à noite, riu incontrolavelmente ao
encontrar o infeliz rapaz, com o lábio inchado, cercado por homens ferozes,
assoviando uma alegre melodia enquanto lágrimas lhe desciam pela face.
Em outra ocasião, Aurélio da
Passagem, estando em viagem de inspeção a suas minas de diamantes, surpreendeu
um dos transportadores de cascalho deitado em uma esteira, à sombra de uma
árvore, enquanto outros trabalhavam. Indagando ao capataz do garimpo o motivo
daquela suposta indolência, foi informado que o sujeito havia alegado forte dor
estomacal após o almoço.
Os relatos
oriundos da tradição oral divergem sobre o que motivou o procedimento
despropositado que se seguiu; uns dizem que o coronel viu aquilo como um
precedente perigoso, um mau exemplo a ser repetido por diversos garimpeiros a
seu serviço; outros afirmam que ele apenas encontrou um pretexto para dar vazão
ao sadismo que o dominava.
O fato, é
que, imediatamente, apeou do cavalo e ordenou a um de seus capangas que fosse
até uma das choupanas que serviam de rancharia para os garimpeiros, e lhe
trouxessem óleo de mamona; produto bastante usado naquela época como
combustível para candeeiros, mas eventualmente, também empregado como beberagem
para animais de grande porte, dado seu forte poder purgativo. Em seguida,
mandou trazerem à sua presença, o garimpeiro achacado e obrigou-o, sob a mira
de uma pistola, a beber o conteúdo da candeia. Não satisfeito, concluiu sua
diatribe com uma determinação perversa a seus jagunços.
- Levem este
cabra preguiçoso pra bem longe daqui. E prestenção: se ele 'despachar' em meus
garimpos, acabem com a vida dele!
Sentado à
sombra de uma gameleira, enquanto fumava um forte charuto, o coronel observou
seus capangas escoltarem o infeliz cascalheira para fora de seus domínios. Ao
regressar horas depois, a jagunçada relatou ao histriónico chefe, que depois de
algum tempo de caminhada, o garimpeiro começou a ficar agitado e a todo
instante perguntava:
- Aqui já
pode?
- Não!
Após penosa
légua, já não suportando as dores
lacerantes no ventre, volta a inquirir:
- E agora
posso fazer as "necessidades"?
- Aqui inda
é o chão do coroné, continue andando.
À meia voz,
o pobre miserável constata desalentado:
- Vige! O
home é dono do mundo... Benza Deus!
Até que em
um certo momento, num gesto de extremo desespero, arremete em tresloucada
corrida mata à dentro, para contentamento da cabroeira que jocosamente efetua
disparos para o alto. O garimpeiro escapou, levando consigo além da preciosa
vida, calças e dignidade inteiramente borradas.
Como
contraponto a estes régulos de aldeia, muitos outros coronéis foram imensamente
estimados por sua gente. Dentre eles, não podemos esquecer de Francisco Dias
Coelho, que durante anos comandou a vida política do município de Morro do
Chapéu, sem nunca ter possuído uma arma ou jagunços a seu serviço. Diplomata
por excelência, nos anos vinte, período particularmente convulsionado do sertão
baiano, cenário de sangrentas lutas entre clãs da Chapada Diamantina; Dias
Coelho tornou sua cidade conhecida todo o conflito. Era para Morro do Chapéu
que parcela considerável da população residente nas zonas onde ocorriam
enfrentamentos, e combatentes feridos ou derrotados, demandavam em busca de
abrigo. Naquele território neutro, sabiam estar a salvo; um oásis de civilidade
meio ao deserto da intolerância.
João Mendes da Costa. Capitulo seguinte
Francisco Otávio L. Ferreira Secretário Adjunto do IFiGFS Estudante do
Curso de Jornalismo (UNEF)
Instituto Histórico e Geográfico de Feira de Santana - Revista: Ano 1 Nº 1 2004
Olá, onde posso encontrar registros/fontes sobre a fazenda caroá e os França Antunes?
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