JOÃO MENDES DA COSTA
Outro coronel que não costumava utilizar capangas armados para sua segurança pessoal ou ataque a terceiros, foi João Mendes da Costa. Este feirense, não só conquistou um lugar no coração de seus conterrâneos, mas também a gratidão de milhares de anónimos retirantes que por Feira de Santana tiveram a ventura de passar em 1932, quando uma terrível secas assolou o nordeste brasileiro.
Cumprindo o
seu segundo ano de mandato como prefeito, João Mendes da Costa muito pouco pode
realizar no setor de construções públicas, pois toda a verba disponível nos
cofres da municipalidade foi utilizada no socorro da legião de migrantes, que
famintos, à porta da prefeitura chegavam, e nunca partiam sem que em seus
embornais levassem algum alimento para uma penosa jornada com destino e futuro
incertos.
Contudo,
apesar da propaiada generosidade, tinha o coronel João Mendes uma peculiaridade
em seu temperamento, bem característico do mandonismo: não tolerava ser
desobedecido ou contrariado. E foi justamente após o seu mandato na prefeitura,
que João Mendes teve a oportunidade de deixar claro que uma decisão sua era
inquestionável.
A chuva
redentora, que caiu no verão de 1933, revigorou o ânimo da gente sertaneja,
enverdeceu campos e pastagens, fez transbordar leitos de riachos, encheu
tanques, cacimbas e resgatou o verde de volta à pálida paisagem das caatingas.
Entretanto, estas enchentes abruptas em uma terra ressequida, e o calor
sufocante trazido pelas trovoadas de verão, favoreceram a proliferação de
mosquitos e consequentemente, ocorreu uma grave epidemia de malária na região
interiorana da Bahia.
O Governo Estadual, ante mais
este flagelo, enviou para os municípios onde a febre palustre incidia mais
gravemente, grupos de combate ao inseto transmissor da doença. Estes
funcionários públicos faziam inspeções em residências, prédios públicos e
instalações rurais, em busca de depósitos de água estagnada; ecossistema
propício à multiplicação de pernilongos, vulgarmente chamados de muriçocas. A
única forma conhecida à época, de assepsia do local infestado, consistia em
pingar gotas de petróleo 'in natura', no depósito aquífero. A medida eliminava
de forma eficiente as larvas, mas provocava o inconveniente de tornar a água
imprópria para consumo, além de quase sempre, inutilizar o recipiente, que
ficava impregnado com o desagradável cheiro do mineral.
Vindos da
capital, os - "guardas da peste", - alcunha com a qual a população
denominava estes agentes sanitários, chegaram na estação ferroviária de Feira
de Santana, vestindo vistosas fardas de cor caqui, causando admiração aos
populares que assistiram ao desembarque do pomposo grupo. Conforme orientação
das autoridades estaduais, o grupo inicialmente dirigiu- se ao casarão onde
residia o coronel João Mendes da Costa, que os aguardava.
Acreditava-se
que a aquiescência do coronel para que inspecionassem sua casa, funcionaria
como uma espécie de salvo-conduto, abrindo as portas das moradias dos demais
feirenses, que como qualquer sertanejo via de regra, eram avessos à gente fardada.
Liderados por
um superior hierárquico cujo nome perdeu-se na memória popular, esta grande
comitiva chegou no velho casarão localizado na rua D'Aurora, que por sua vez
situava-se nas proximidades de uma aguada pública conhecida como "tanque
da nação". No local a população mais carente se abastecia de água para
consumo doméstico numa fonte jorrante, e vaqueiros conduziam boiadas para beber
em cochos construídos com esta finalidade. Área, à vista disso, muito
susceptível de infestação pelo vetor da malária.
O coronel,
homem de pouca instrução, mas traquejado pela vida pública, os recebeu
hospitaleiramente, e ao lado do empertigado chefe da diligência, acompanhou sem
obstaculizar, o trabalho dos agentes que foram vistoriando as áreas externa e
interna da casa, aplicando gotas de petróleo onde se houve necessário.
Tudo transcorre
conforme a expectativa geral, até ser localizado num dos quartos da casa, um
grande vaso de barro, cheio d'água; e larvas de mosquitos são detectadas no seu
interior. Questionado porque aquela ânfora encontra-se em local úmido, escuro e
afastado da cozinha, o coronel esclarece que é um utensílio centenário herdado
de seus antepassados, portanto uma relíquia familiar conservada com muito
carinho há várias gerações. O chefe dos mata-mosquitos, cioso do seu dever, sem
demonstrar simpatia ou benevolência, declara que é necessário desinfetar o
recipiente. O coronel tenta contemporizar dizendo-lhe não precisar chegar a tal
ponto, pois mesmo sabendo que vazio, o pote poderá perder a impermeabilidade,
se compromete em derramar a água nele contida, enquanto a epidemia não estiver
debelada.
Para demonstrar
que detém a autoridade, o emproado inspetor se mostra irredutível, e determina
ao agente que prossiga com a desinfecção. Obediente, o "guarda da
peste", enfia a mão em um embornal que traz a tiracolo e retira um pequeno
tubo contendo petróleo. Neste instante, já com o rosto ruborizado, alterando o
tom de voz, João Mendes adverte:
- Não seja
besta, guarde este vidro...
À medida que o
diálogo se torna mais áspero, parentes do patriarca e os demais agentes
sanitários, acorrem ao cubículo aonde se estabelecera um patético campo de
batalha.
Aquele já não é
mais um mero vasilhame de barro; é agora, um troféu e ser conquistado. É o
confronto da nova ordem, instalada após a revolução de 1930, contra a
oligarquia patriarcal, ícone da Velha República. Ao vencedor singular butim: um
pote.
Observado por
aquela inesperada e silenciosa plateia, e vendo a indecisão de seu comandado no
cumprimento da ordem, o inspetor, numa exibição exacerbada de arbítrio, toma a
ofensiva:
- Os tempos
mudaram! Coronel de patente comprada não manda mais na Bahia! Só recebo ordens
do Governo Estadual, ouviu?
E, aliando ação
às palavras, inopinadamente arrebata das mãos do subalterno o frasco de
petróleo, tomando para si a heroica missão poluidora, em nome da revolução
vitoriosa. Só não contava com o contra-ataque do inimigo, que dando dois passos
para trás, abre o paletó, saca um revólver e sentencia, em nome do coronelismo
resistente:
- Pois então,
moleque, despeje! Despeje se você for homem!
É um
pandemónio! Uns correm para a rua, outros em direção aos fundos do casarão,
enquanto o velho patriarca gira sobre os calcanhares, arma em, punho,
procurando em vão, um alvo mais estático. Em segundos, a quieta e descalçada
rua da Aurora, é tomada por "guardas da peste" que em debandada fogem
rumo à estação ferroviária, fazendo poeira se alevantar no velho caminho das
boiadas. O único que não está entre os fugitivos é o pedante inspetor. Não por
ser o mais corajoso entre todos, antes talvez, o menos aventurado.
Na correria que
se seguiu, o chefe dos mata-mosquitos partiu em direção ao quintal, e tomado
pelo pânico, não teve forças para saltar o cercado de varas que circundava o
casarão. Assim, como única alternativa, buscou abrigo no oitão da casa, onde
ofegante e trémulo, braços abertos, calcanhares unidos e costas colada à
parede, tentou ficar o menos visível que aquele arremedo de camuflagem lhe
permitia. Já começava a sentir-se ancho naquela posição tragicômica, quando um
estalido metálico o faz olhar em direção oposta. Distante apenas alguns passos,
o coronel João Mendes da Costa, que se aproximara sorrateiramente vindo pela
porta da cozinha, arma engatilhada, e apontada para o infeliz, diz
sarcasticamente:
- Despregue de
minha parede que eu não gasto bala em lagartixa...
Salvo pela
interferência de familiares do coronel, e após acordar do súbito desmaio
causado pelo pavor, foi o inspetor levado à estação ferroviária ainda em estado
de choque. Retornando à Capital, fez um grande estardalhaço junto às
autoridades, que em vista dos acontecimentos, enviou a Feira de Santana uma
comissão pacificadora composta de ilustres baianos, da qual fazia parte um dos
filhos de João Mendes; jovem advogado, bem relacionado pelo epíteto de
"Suíça Sertaneja"; graças à postura de imparcialidade que manteve
durante Sentado em uma cadeira ao lado do vaso, de onde teimosamente nos
últimos dias relutava em se afastar, arma à cintura, o velho ouviu atentamente
o arrazoamento da comitiva. Alegando a completa desmoralização do programa de
combate à malária, depois da humilhante expulsão sofrida em Feira de Santana,
os visitantes sugeriam que para satisfazer o Governo e a opinião pública, sem,
contudo, perder a respeitabilidade, poderia o coronel, frente a umas poucas
testemunhas, colocar com as próprias mãos, algumas gotas de petróleo no
interior da bilha. Estaria assim cumprida a missão dos agentes sanitários, e o
incidente seria dado por encerrado.
Após ouvir calmamente
a proposta pacificadora, João Mendes levantou-se e, enquanto palmeava
carinhosamente o antigo utensílio foi taxativo:
- Não,
senhores, a mão de ninguém, muito menos a minha, vai estragar este pote. Está
com minha família há muito tempo... Matou a sede de meu avô, a de meu pai, e na
minha infância era dele que eu bebia quando retornava das passarinhadas nas
redondezas dos três riachos. O tal do inspetor disse que não sou mais
autoridade, e tem razão, meu tempo já passou: mas digam lá aos donos do poder,
que nesta casa, a última palavra ainda é minha; e aqui ninguém mexe, custe o
que custar!
A comitiva
voltou à capital, os mata-mosquitos voltaram à Feira de Santana sob o comando
de outro inspetor, o saneamento prosseguiu, mas ninguém ousou voltar ao velho
casarão.
Contam os mais
velhos que, após muitos anos do falecimento de João Mendes, o pote da discórdia
permanecia no mesmo quartinho, como um monumento caboclo em honra aos coronéis
de outrora.
As atitudes
idiossincráticas destes régulos de aldeia, a princípio podem parecer
recrimináveis em sua inteireza; mas a partir de uma análise mais abrangente,
levando em consideração o meio sócio-geográfico, que lhes serviu de berço, sem
perder de vista ainda, a temporalidade dos fatos, é possível concluir que a
linha divisória entre o certo e errado, admissível ou reprovável, perde nitidez
à medida que recuamos no tempo.
Nos idos de 1830, para Militão Plácido Antunes, deixar de lavar com
sangue a honra maculada, era danar-se perante a sociedade; um opróbrio a ser
carregado até o fim da vida; uma tácita abdicação do poder, pois não mais teria
o respeito de sua grei.
Também estaria sujeito a severas críticas o coronel João Mendes da
Costa, caso voltasse atrás e permitisse que aquele velho pote fosse danificado;
melhor seria enfrentar o Estado, à mão armada, que se submeter ao escárnio da
provinciana comunidade feirense de 1933.
Não se objetiva aqui, absolver alguns coronéis de eventuais
atrocidades antanho.
Entre as qualificações apreciáveis em um chefe sertanejo, estava
justamente a firmeza de caráter, a capacidade de reação imediata à afronta
sofrida, e uma valentia desmesurada. Reputação que os tornavam respeitados
entre os seus pares, temidos por inimigos e admirados pelo vulgo.
Horácio Queiroz de Mattos. Capitulo III
Francisco Otávio L. Ferreira Secretário Adjunto do IFiGFS Estudante do Curso de Jornalismo (UNEF)
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