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FOTO OFICIAL DO ENCONTRO

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terça-feira, 6 de outubro de 2020

0 CORONELISMO NA BAHIA - II

JOÃO MENDES DA COSTA


 Outro coronel que não costumava utilizar capangas armados para sua segurança pessoal ou ataque a terceiros, foi João Mendes da Costa. Este feirense, não só conquistou um lugar no coração de seus conterrâneos, mas também a gratidão de milhares de anónimos retirantes que por Feira de Santana tiveram a ventura de passar em 1932, quando uma terrível secas assolou o nordeste brasileiro.

Cumprindo o seu segundo ano de mandato como prefeito, João Mendes da Costa muito pouco pode realizar no setor de construções públicas, pois toda a verba disponível nos cofres da municipalidade foi utilizada no socorro da legião de migrantes, que famintos, à porta da prefeitura chegavam, e nunca partiam sem que em seus embornais levassem algum alimento para uma penosa jornada com destino e futuro incertos.

Contudo, apesar da propaiada generosidade, tinha o coronel João Mendes uma peculiaridade em seu temperamento, bem característico do mandonismo: não tolerava ser desobedecido ou contrariado. E foi justamente após o seu mandato na prefeitura, que João Mendes teve a oportunidade de deixar claro que uma decisão sua era inquestionável.

A chuva redentora, que caiu no verão de 1933, revigorou o ânimo da gente sertaneja, enverdeceu campos e pastagens, fez transbordar leitos de riachos, encheu tanques, cacimbas e resgatou o verde de volta à pálida paisagem das caatingas. Entretanto, estas enchentes abruptas em uma terra ressequida, e o calor sufocante trazido pelas trovoadas de verão, favoreceram a proliferação de mosquitos e consequentemente, ocorreu uma grave epidemia de malária na região interiorana da Bahia.

O Governo Estadual, ante mais este flagelo, enviou para os municípios onde a febre palustre incidia mais gravemente, grupos de combate ao inseto transmissor da doença. Estes funcionários públicos faziam inspeções em residências, prédios públicos e instalações rurais, em busca de depósitos de água estagnada; ecossistema propício à multiplicação de pernilongos, vulgarmente chamados de muriçocas. A única forma conhecida à época, de assepsia do local infestado, consistia em pingar gotas de petróleo 'in natura', no depósito aquífero. A medida eliminava de forma eficiente as larvas, mas provocava o inconveniente de tornar a água imprópria para consumo, além de quase sempre, inutilizar o recipiente, que ficava impregnado com o desagradável cheiro do mineral.

Vindos da capital, os - "guardas da peste", - alcunha com a qual a população denominava estes agentes sanitários, chegaram na estação ferroviária de Feira de Santana, vestindo vistosas fardas de cor caqui, causando admiração aos populares que assistiram ao desembarque do pomposo grupo. Conforme orientação das autoridades estaduais, o grupo inicialmente dirigiu- se ao casarão onde residia o coronel João Mendes da Costa, que os aguardava.

Acreditava-se que a aquiescência do coronel para que inspecionassem sua casa, funcionaria como uma espécie de salvo-conduto, abrindo as portas das moradias dos demais feirenses, que como qualquer sertanejo via de regra, eram avessos à gente fardada.

Liderados por um superior hierárquico cujo nome perdeu-se na memória popular, esta grande comitiva chegou no velho casarão localizado na rua D'Aurora, que por sua vez situava-se nas proximidades de uma aguada pública conhecida como "tanque da nação". No local a população mais carente se abastecia de água para consumo doméstico numa fonte jorrante, e vaqueiros conduziam boiadas para beber em cochos construídos com esta finalidade. Área, à vista disso, muito susceptível de infestação pelo vetor da malária.

O coronel, homem de pouca instrução, mas traquejado pela vida pública, os recebeu hospitaleiramente, e ao lado do empertigado chefe da diligência, acompanhou sem obstaculizar, o trabalho dos agentes que foram vistoriando as áreas externa e interna da casa, aplicando gotas de petróleo onde se houve necessário.

Tudo transcorre conforme a expectativa geral, até ser localizado num dos quartos da casa, um grande vaso de barro, cheio d'água; e larvas de mosquitos são detectadas no seu interior. Questionado porque aquela ânfora encontra-se em local úmido, escuro e afastado da cozinha, o coronel esclarece que é um utensílio centenário herdado de seus antepassados, portanto uma relíquia familiar conservada com muito carinho há várias gerações. O chefe dos mata-mosquitos, cioso do seu dever, sem demonstrar simpatia ou benevolência, declara que é necessário desinfetar o recipiente. O coronel tenta contemporizar dizendo-lhe não precisar chegar a tal ponto, pois mesmo sabendo que vazio, o pote poderá perder a impermeabilidade, se compromete em derramar a água nele contida, enquanto a epidemia não estiver debelada.

Para demonstrar que detém a autoridade, o emproado inspetor se mostra irredutível, e determina ao agente que prossiga com a desinfecção. Obediente, o "guarda da peste", enfia a mão em um embornal que traz a tiracolo e retira um pequeno tubo contendo petróleo. Neste instante, já com o rosto ruborizado, alterando o tom de voz, João Mendes adverte:

- Não seja besta, guarde este vidro...

À medida que o diálogo se torna mais áspero, parentes do patriarca e os demais agentes sanitários, acorrem ao cubículo aonde se estabelecera um patético campo de batalha.

Aquele já não é mais um mero vasilhame de barro; é agora, um troféu e ser conquistado. É o confronto da nova ordem, instalada após a revolução de 1930, contra a oligarquia patriarcal, ícone da Velha República. Ao vencedor singular butim: um pote.

Observado por aquela inesperada e silenciosa plateia, e vendo a indecisão de seu comandado no cumprimento da ordem, o inspetor, numa exibição exacerbada de arbítrio, toma a ofensiva:

- Os tempos mudaram! Coronel de patente comprada não manda mais na Bahia! Só recebo ordens do Governo Estadual, ouviu?

E, aliando ação às palavras, inopinadamente arrebata das mãos do subalterno o frasco de petróleo, tomando para si a heroica missão poluidora, em nome da revolução vitoriosa. Só não contava com o contra-ataque do inimigo, que dando dois passos para trás, abre o paletó, saca um revólver e sentencia, em nome do coronelismo resistente:

- Pois então, moleque, despeje! Despeje se você for homem!

É um pandemónio! Uns correm para a rua, outros em direção aos fundos do casarão, enquanto o velho patriarca gira sobre os calcanhares, arma em, punho, procurando em vão, um alvo mais estático. Em segundos, a quieta e descalçada rua da Aurora, é tomada por "guardas da peste" que em debandada fogem rumo à estação ferroviária, fazendo poeira se alevantar no velho caminho das boiadas. O único que não está entre os fugitivos é o pedante inspetor. Não por ser o mais corajoso entre todos, antes talvez, o menos aventurado.

Na correria que se seguiu, o chefe dos mata-mosquitos partiu em direção ao quintal, e tomado pelo pânico, não teve forças para saltar o cercado de varas que circundava o casarão. Assim, como única alternativa, buscou abrigo no oitão da casa, onde ofegante e trémulo, braços abertos, calcanhares unidos e costas colada à parede, tentou ficar o menos visível que aquele arremedo de camuflagem lhe permitia. Já começava a sentir-se ancho naquela posição tragicômica, quando um estalido metálico o faz olhar em direção oposta. Distante apenas alguns passos, o coronel João Mendes da Costa, que se aproximara sorrateiramente vindo pela porta da cozinha, arma engatilhada, e apontada para o infeliz, diz sarcasticamente:

- Despregue de minha parede que eu não gasto bala em lagartixa...

Salvo pela interferência de familiares do coronel, e após acordar do súbito desmaio causado pelo pavor, foi o inspetor levado à estação ferroviária ainda em estado de choque. Retornando à Capital, fez um grande estardalhaço junto às autoridades, que em vista dos acontecimentos, enviou a Feira de Santana uma comissão pacificadora composta de ilustres baianos, da qual fazia parte um dos filhos de João Mendes; jovem advogado, bem relacionado pelo epíteto de "Suíça Sertaneja"; graças à postura de imparcialidade que manteve durante Sentado em uma cadeira ao lado do vaso, de onde teimosamente nos últimos dias relutava em se afastar, arma à cintura, o velho ouviu atentamente o arrazoamento da comitiva. Alegando a completa desmoralização do programa de combate à malária, depois da humilhante expulsão sofrida em Feira de Santana, os visitantes sugeriam que para satisfazer o Governo e a opinião pública, sem, contudo, perder a respeitabilidade, poderia o coronel, frente a umas poucas testemunhas, colocar com as próprias mãos, algumas gotas de petróleo no interior da bilha. Estaria assim cumprida a missão dos agentes sanitários, e o incidente seria dado por encerrado.

Após ouvir calmamente a proposta pacificadora, João Mendes levantou-se e, enquanto palmeava carinhosamente o antigo utensílio foi taxativo:

- Não, senhores, a mão de ninguém, muito menos a minha, vai estragar este pote. Está com minha família há muito tempo... Matou a sede de meu avô, a de meu pai, e na minha infância era dele que eu bebia quando retornava das passarinhadas nas redondezas dos três riachos. O tal do inspetor disse que não sou mais autoridade, e tem razão, meu tempo já passou: mas digam lá aos donos do poder, que nesta casa, a última palavra ainda é minha; e aqui ninguém mexe, custe o que custar!

A comitiva voltou à capital, os mata-mosquitos voltaram à Feira de Santana sob o comando de outro inspetor, o saneamento prosseguiu, mas ninguém ousou voltar ao velho casarão.

Contam os mais velhos que, após muitos anos do falecimento de João Mendes, o pote da discórdia permanecia no mesmo quartinho, como um monumento caboclo em honra aos coronéis de outrora.

As atitudes idiossincráticas destes régulos de aldeia, a princípio podem parecer recrimináveis em sua inteireza; mas a partir de uma análise mais abrangente, levando em consideração o meio sócio-geográfico, que lhes serviu de berço, sem perder de vista ainda, a temporalidade dos fatos, é possível concluir que a linha divisória entre o certo e errado, admissível ou reprovável, perde nitidez à medida que recuamos no tempo.

Nos idos de 1830, para Militão Plácido Antunes, deixar de lavar com sangue a honra maculada, era danar-se perante a sociedade; um opróbrio a ser carregado até o fim da vida; uma tácita abdicação do poder, pois não mais teria o respeito de sua grei.

Também estaria sujeito a severas críticas o coronel João Mendes da Costa, caso voltasse atrás e permitisse que aquele velho pote fosse danificado; melhor seria enfrentar o Estado, à mão armada, que se submeter ao escárnio da provinciana comunidade feirense de 1933.

Não se objetiva aqui, absolver alguns coronéis de eventuais atrocidades antanho.

Entre as qualificações apreciáveis em um chefe sertanejo, estava justamente a firmeza de caráter, a capacidade de reação imediata à afronta sofrida, e uma valentia desmesurada. Reputação que os tornavam respeitados entre os seus pares, temidos por inimigos e admirados pelo vulgo.

Um Coronel, não podia ser transigente com as regras consuetudinárias que a sociedade o nomeava guardião, e ao mesmo tempo lhe impunha, sob pena de não ter legitimada por seus conterrâneos, a patente granjeada por compra ou através de benesses políticas.

Horácio Queiroz de Mattos. Capitulo III

Francisco Otávio L. Ferreira Secretário Adjunto do IFiGFS Estudante do Curso de Jornalismo (UNEF)

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