HORÁCIO QUEIROZ DE MATTOS
O lendário Horácio Queiroz de Mattos, poderoso coronel baiano,
intuía a importância deste legado. Nascido na fazenda Capim Duro, nas serranias
da Chapada Diamantina, onde desde os primeiros anos aprendeu a labutar nos
garimpos, não possuía instrução formal, mas era dono de uma capacidade ímpar
para entender seu tempo, gente, preceitos e tradições. E deu mostras dessa
clarividência, em junho de 1919, quando tomou duas decisões segundo o severo
código de justiça e honra herdado dos antepassados.
Após cercar com seus jagunços e combater cruentamente por cinco
meses, a povoação de Barra do Mendes, condenando os sitiados a sobreviver
alimentando-se de animais de estimação, ratos e utensílios de couro como malas,
selas e sapatos; Horácio recebeu na trincheira cavada em torno do lugarejo, a
visita de uma delegação enviada pelo Coronel Militão Coelho, chefe da comuna e
visceral inimigo da família Mattos, há décadas. Empunhando bandeira branca, os
cavaleiros propunham uma rendição honrosa, já que não possuíam mais meios para
combater o grupo de Horácio. Os sitiantes que também estavam bastante
desgastados com aquela guerra sangrenta que já havia deixado mais de 400
mortos, entre os combatentes, aceitaram a rendição nos termos oferecidos.
Ficou acordado que no dia seguinte, 08 de junho, pacificamente, sem
molestar os habitantes, Horácio de Mattos entraria na localidade, quando então
o chefe dos vencidos deporia as armas e abdicaria do poder sobre Barra do
Mendes. Porém, na noite do mesmo dia, o velho coronel Militão, contrariando uma
antiga e universal tradição guerreira, ao invés de permanecer ao lado da sua
grei, resolve fugir, levando consigo seu filho de 27 anos, e alguns jagunços de
confiança; deixando para trás outros filhos, a esposa Maria da Glória, e o
restante da parentela.
Na manhã seguinte, ao chegar triunfalmente na vila, montado em um
belo cavalo baio, à frente de seus jagunços, Horácio ficou decepcionado ao ser
recebido por Joaquim Sodré, o mesmo indivíduo que no dia anterior, havia
chefiado a comitiva de capitulação. Subdelegado, e cunhado de Militão Coelho,
foi visivelmente constrangido, que Joaquim Sodré reportou a abjurante e pouco digna
atitude do velho coronel.
Após ter tomado posse da vila, e proibido qualquer represália
contra os familiares do inimigo, como pretendiam alguns dos seus homens,
Horácio de Mattos ordenou uma ferrenha caçada aos fujões.
Surpreendidos alguns dias depois, escondidos nas matas que
circundavam a serra da Catuaba, não muito distante de Barra do Mendes, os
fugitivos entraram em ligeiro combate com os perseguidores, e mais uma vez
Militão Coelho deserta, deixando no campo da luta, Nestor Coelho, o filho que o
acompanhara na escapada noturna. Capturado, o rapaz é conduzido à presença de
Horácio, que numa decisão magnânima, já que tinha perdido dois irmãos, mortos
em combate contra Militão, ordena que o prisioneiro seja libertado e
encarrega-se pessoalmente, de entregá-lo ileso à mãe, D. Maria da Glória.
Este gesto de benevolência e também de astúcia política, rendeu ao
chefe jagunço a simpatia da comunidade, sendo inclusive convidado para almoço
de júbilo na casa de Joaquim Sodré, tio do recém liberto Nestor Coelho.
Estava Horácio ainda à mesa de refeição, quando um cavaleiro
refreia a montaria na porta da casa, e muito sobressaltado, vem lhe dar conta
de um grave incidente envolvendo jagunços das duas facções que estiveram em
luta por meses. Conforme relatou, após o combate da serra da Catuaba, um dos
sequazes de Militão, de nome José Auto, que conseguiu fugir durante o
entrevero, voltou para sua moradia em uma distante povoação onde se homiziou.
Informado do fato, Chico Moreira, jagunço de Horácio, partiu no encalço de José
Auto; porém, chegando no endereço indicado, encontrou a esposa deste, sozinha e
em avançado estado de gravidez. Inconformado com a viagem debalde, Chico
Moreira iniciou uma sessão de tortura física e psicológica para que ela
indicasse o paradeiro do marido. Após horas neste suplício, sem obter
resultados, num ato de extrema perversidade, punhal à mão, ele decide que irá
abrir a barriga da pobre infeliz como vingança. Neste momento, José Auto que
estava escondido nas proximidades da casa, não mais resistindo às súplicas de
sua esposa, por misericórdia, reúne a pouca coragem que possui e do terreiro da
casa, atira no malvado jagunço, que, ferido, corre para a povoação de Barro
Alto distante três léguas de Barra do Mendes. De lá, sem mais poder prosseguir,
Chico envia por aquele portador, recado a Horácio de Mattos pedindo remédios
para curar o ferimento.
O ainda jovem chefe sertanejo ouve a narrativa e percebe que as
circunstâncias o estão levando a tomar difícil decisão. Apesar de reconhecer os
serviços prestados por Chico Moreira durante os vários meses que estivera em
peleja contra Militão, também sabe que o respeito à família, principalmente do
inimigo inerme, é, sobretudo, um dever do combatente que luta com honra; regra
inquebrantável transmitida por gerações da tribo dos Mattos.
Horácio, morigeradamente, despacha de volta o emissário dizendo-lhe
que tomará as providências cabíveis. Em seguida, sinaliza para que se aproxime
seu jagunço de maior confiança, de quem quase nunca se aparta, e diante dos
anfitriões e demais comensais que, em silenciosa expectativa, aguardavam sua
decisão, determina:
- Vá urgentemente providenciar o remédio do Chico Moreira.
O cabra apenas balança a cabeça afirmativamente e sai. Minutos
depois retorna e pergunta hesitante:
- E tu por um acaso, é dono de butica?
O jagunço retira-se sem mais perguntas e o almoço continua
animadamente.
No dia seguinte, Chico Moreira é executado com dois tiros. Justiça
feita conforme "merecimentos" da tradição jagunça.
Por outro lado, o coronel Militão Coelho, também demonstrou, de
forma peculiar, que o desrespeito a princípios atávicos, não poderia ocorrer
impunemente; sendo ele mesmo, réu, juiz e executor de sua sentença.
Após uma tentativa inócua de retomar, pela força das armas, a vila
de Barra do Mendes, Militão refugia-se no município de Pilão Arcado, na casa do
coronel Franklin Lins de Albuquerque, amigo e correligionário político.
Sabendo-se estigmatizado pelo comportamento pusilânime ante seu maior inimigo,
Horácio de Mattos, cai em profunda depressão. Finalmente enclausura-se num
quarto, em absoluto silêncio, e num processo de autodestruição recusa água,
alimentos, fuma incessantemente, até que morre por adinamia. Uma forma
obstinada e cruel de suicídio, como a mostrar para sua gente, quanto prezava a
dignidade perdida seis meses antes, naquela canhestra fuga de Barra do Mendes.
Seus restos mortais repousam atualmente sob as águas barrentas do
rio São Francisco, no cemitério da antiga cidade de Pilão Arcado, inundada pelo
lago de Sobradinho em 1977.
Horácio de Queiroz Mattos, naquele tempo, já avultava como o mais
respeitado e temido coronel que a Velha República baiana conheceria. Seu nome
passa a ser notícia nos jornais de Salvador; aqui como um líder regional, ali
como um chefe de temíveis bandoleiros dos sertões. Pontos de vida díspares
explicáveis pelo sectarismo dos jornais baianos, atendendo sempre a interesses
momentâneos dos grupos oligárquicos a que pertenciam seus proprietários.
É nesta conjuntura que as eleições para o executivo baiano
acontecem e sai vitoriosa a chapa governista encabeçada por José Joaquim
Seabra, derrotando a chapa oposicionista representada por Paulo Martins Fontes,
juiz Federal, apadrinhado por Rui Barbosa, o Águia de Haia. Eleição esta, como todas antes e muitas depois, feita a bico-de-pena,
não refletindo necessariamente a vontade popular, haja vista que a posse do
governador depende da Assembleia Legislativa, quase sempre controlada pelo
partido dominante e pronta a proceder à verificação de poderes, proclamando
eleito o candidato governista.
Exaltado como paladino da justiça, e defensor intransigente das
instituições democráticas, Rui Barbosa, alegando falta de lisura nas eleições,
não admite a derrota de seu candidato, e, junto com correligionários, busca uma
forma de reverter o quadro eleitoral, lançando mão, entretanto, de expediente
contrário as suas famosas pregações cívicas. O plano é convulsionar o Estado da
Bahia de modo que deixe como única alternativa ao presidente Epitácio Pessoa,
decretar uma intervenção federal, onde em última instância, resultará na
anulação das eleições baianas. Mas o ardil só é exequível com a mobilização de
homens, em armas, e para isso precisam do apoio dos belicosos coronéis
interioranos. Alguém lembra então, o nome daquele jovem caudilho da Chapada
Diamantina, famoso pela coragem, e imensamente prestigiado no seio da população
sertaneja.
Aprovada a sugestão, os integrantes do partido oposicionista entre
eles Ernesto Simões Filho, Luiz Viana, Otávio Mangabeira, Pedro Lago, João
Mangabeira e outros baianos ilustres enviam através do amigo comum, Manoel
Alcântara de Carvalho, carta a Horácio, convidando-o, em nome de Rui Barbosa,
para uma suposta cruzada redentora dos sertões. Oferecem- lhe ainda ajuda
financeira, armas e apoio nas imprensas baiana e carioca para liderar um levante
armado que partindo do interior, chegue à Capital, deponha o atual governador
Antônio Muniz, e impeça a posse do recém eleito, J.J. Seabra. Rui e os demais
sabem que esta é uma façanha sangrenta e de resultado quimérico; mas de fato
lhes interessam mesmo é alarmar o centro do poder no Rio de Janeiro, provocando
a desejada intervenção.
Horácio, assim como uma parcela expressiva de outros chefes
sertanejos, encontra-se profundamente revoltado com os desmandos do atual
governante baiano; não é difícil, portanto, para os conspiradores, convencê-lo
a capitanear o movimento armado, e o nome do ilustre Conselheiro da República
entre os mentores do movimento é fator determinante para que aceite o convite.
Já naquele tempo, apontados nos discursos acadêmicos como uma
mácula social; responsabilizados pelas mais brilhantes mentes da embrionária
república brasileira, por cercear o desenvolvimento nas regiões agrárias, os
coronéis, subitamente, passam a ser aclamados defensores das classes oprimidas,
redentores do sertão. Esta transmutação engendrada por Rui e seus prosélitos,
se evidencia nas apoteóticas matérias de jornais oposicionistas, em inflamados
comícios relâmpagos improvisados nas ruas de Salvador, e até mesmo em
pronunciamentos no Congresso Nacional.
Neste xadrez político-eleitoreiro, os líderes tribais são meros
peões, e o sangue que borbotará nos carreiros, caatingas, vilas e lares do
sertão baiano irá figurar na história como resultado de conflito entre jagunços
sanguinários, eis a sordidez da política partidária amesquinhando homens;
apequenando almas.
É, pois, entusiasmado com a possibilidade de estar ombreado com o
notável Rui Barbosa, num levante popular, que Horácio de Mattos reúne sua tropa
descalça. Aproximadamente dois mil homens, dorsos acobreados pele causticante
sol diamantino, pés abrutalhados pelo cascalho cortante dos garimpos, mãos
calejadas pelo cabo da foice ou bordas de bateia, músculos enrijecidos pela
labuta diária nas grunas escarpadas, são alçados em questão de dias, à condição
de guerreiros; irmanados e dispostos a seguir àquele que consideram um igual,
nascido no mesmo berço humilde. Este é o perfil do Exército caboclo de Horácio
de Mattos, o Coronel-Jagunço.
Ver também:
Horácio Queiroz de Mattos. Capitulo continuação final
Francisco Otávio L. Ferreira Secretário Adjunto do IFiGFS Estudante do Curso de Jornalismo (UNEF)
Instituto Histórico e Geográfico de Feira de Santana - Revista: Ano 1 Nº 1 2004
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