da Bahia e de São Paulo.
A baiana Maria Quitéria já seria uma mulher de 30 anos quando o Príncipe
português D. Pedro separou o Brasil de Portugal, em 7 de setembro de 1822, em
São Paulo, deixando muitos dos seus patrícios descontentes e resistindo em
outras Províncias. Alguns comandantes militares na ex-colônia não acataram suas
ordens e preferiram obedecer às da Corte de Lisboa como foi o caso do
brigadeiro Ignácio Luiz Madeira de Melo, na Bahia. Suas tropas tomaram a capital,
tendo muitas famílias fugido para o interior a fim de organizar a resistência.
Tais fatos repercutiram por todo o território do Império e não seria a Comarca
de Nossa Senhora do Rosário do Porto da Cachoeira, a maior e mais rica vila da
Província, que ficaria desconhecendo os mesmos.
A cabocla sertaneja, Maria Quitéria de Jesus, ali na Fazenda Olhos dÁgua,
localizada na Serra da Agulha, à beira da estrada boiadeira entre as capelas de
Santo Antônio de Tanquinho e de Santa Bárbara, ouvia as notícias e comentários
trazidos pelos tropeiros, vaqueiros, penitentes e feirantes. Como toda moça, da
roça naquela época, era iletrada mas sabedora dos trabalhos domésticos como
cozinhar, lavar roupa, torrar e pilar café, costurar, fiar, limpar e arrumar
casa, varrer terreiros, além de outros afazeres como cortar lenha, pegar em
enxada na lavoura de campo, ajudar a tirar leite e cuidar das galinhas, cães e
da criação de gado uma vez que seu pai, Gonçalo Alves de Almeida, era um
fazendeiro, morador nos próprios domínios como era o costume patriarcal de
então.
A menina Maria foi para aquelas terras, aos doze anos, quando seu pai,
viúvo, contraiu matrimónio com dona Rosa Maria de Brito, adquirindo aquela
propriedade. Quando ele abriu o inventário de sua primeira esposa, D. Quitéria
Maria de Jesus, em 1802, na Comarca de Cachoeira, jurou que era natural dali da
Freguesia de São José das Itapororocas e que tinha três filhos: Maria Quitéria,
nascida em 1792 (sem declarar dia e mês), Josefa Maria, em 1794, e Luiz, em
1796. Assim, ela nasceu naquele Sítio Licorizeiro, declarado no inventário uma
vez que na época não havia maternidade para mães de família. As parturientes
concebiam em casa mesmo podendo só contar com a assistência de parteiras locais
na falta de médicos, havendo grande número de mortes. Como Maria era a mais
velha, ficou sendo a mais responsável pelos irmãos e pela casa, embora Gonçalo
declarasse ter seis escravos, afora dez reses bovinas, dezesseis cavalares, o
que não era grandes posses. Tanto é que cinco meses depois, ainda no período de
luto, contraiu outro matrimonio, discretamente, sem a presença dos filhos com
D. Eugenia Maria de Jesus, a qual era órfã dos pais, na igreja matriz de São
José, em 19 de julho de 1802, sendo oficiante o vigário Miguel Ribeiro Lima.
Entretanto, a menina Maria Quitéria se deu bem com a madrasta. Esta faleceu
pouco tempo depois, em 1803, sem deixar filho, enviuvando novamente o Sr.
Gonçalo.
No terceiro casamento de seu pai, a adolescente Maria Quitéria não foi
compreendida como enteada. Tornou-se arredia, teimosa e rebelde. Procurava
ficar em casa o menos tempo possível, preferindo andar pelos matos colhendo
frutos, pastoreando o gado, montando em animais, caçando passarinhos com
bodogue e atiradeira. À medida em que os anos passavam, desenvolveu-se, no
manejo de armas, notadamente com a espingarda, aperfeiçoando a pontaria e
ficando mais senhora de si.
O pai prosperava. Já tinha adquirido mais terras na Mamoneira, que ficava
na Fazenda Santiago, perto dali. Estava mais ocupado com os serviços, nos
roçados de algodão, milho, feijão, fumo, mandioca e de outras plantações. É
possível que tenha feito experiências com trigo, como muitos agricultores de
origem portuguesa fizeram por aquelas terras. Também, com as dezenas de
escravos e mais com as criações de bois, cavalos, ovelhas, cabras e porcos.
Outras filhas foram nascendo precisando de atenções e cuidado. Mesmo porque
Quitéria já era moça feita e casadoura, embora não quisesse ou não pudesse
casar por alguma razão, devendo não aceitar os partidos que lhe arranjava o pai
ou a família como era o costume do tempo.
Gonçalo Alves tinha outros seis filhos bastardos, frutos de relações com
escravas e com outras mulheres trabalhadoras e tabaroas dali, não fugindo à
icgra dos colonos lusitanos e seus descendentes machos que se ligavam ou
casavam com mulheres da terra disponíveis, na falta de brancas ou de patrícias.
Só mais tarde teve outro filho legítimo, o Manoel José, sexto rebento e caçula,
com D. Maria Rosa.
À medida em que D. Maria Rosa ia tendo as filhas Francisca, Tereza, Maria
Bernarda, Ana e Josefa, a convivência com Maria Quitéria se distanciava. A
senhora era implicante mas a sua filha Tereza era amiga e muito lhe ajudou
quando decidiu fugir para lutar pela Independência.
CONDIÇÃO FEMININA
A vida independente e mais livre de Maria Quitéria e o contato maior com a
natureza e animais, podiam ter lhe despertado a prática de sexo escondido.
Muitos falam que tinha um namorado, o Gabriel Pereira de Brito cujo casamento o
pai não queria pois o rapaz era pobre. Uma moça desvirginada, naquele tempo,
era sinónimo de mulher perdida, tendo que mentir sobre a sua situação e fugir
do casamento com ouro homem. As famílias não perdoavam. A situação das mulheres
era um pouco mais do que as escravas e uma moça era para se casar virgem com
quem o pai escolhesse, ter filhos, tomar conta da casa, e ficar iletrada.
Assim, o analfabetismo campeava, também.
Os biógrafos
de Maria Quitéria, e não são poucos, sempre apresentam o mito esquecendo de
focalizar a sua condição de mulher, achando que, com isso, possam depreciar a
sua conduta moral. Muitos historiadores, principalmente os poetas do
Romantismo, como Antônio Lopes, Álvaro Reis, Franklin Dória, Castro Alves e
Santos Titara mostram os heróis como se eles não fossem humanos, enaltecendo
somente as qualidades e ideais. A heroína Maria Quitéria era uma mulher normal.
Entretanto, foi diferente por assumii uma atitude incomum para as suas
contemporâneas, realizando mais do que o dever em um determinado momento, o que
leva o intelectual Hugo Silva a afirmar que "a afigura do herói tem
existido, em todos os tempos e em todos os povos, justamente porque é
necessário". Assim, fica difícil separar a figuia do herói, do mito.
Pode ser
discutido se foi somente o seu patriotismo que a fez se alistai como voluntária
nas hostes do "Exército Libertador" ou se também seria a paixão, à
primeira vista, pelo emissário da "Junta Interina Conciliatória e do
Defesa". Este deveria ser simpático e entusiasmado para tal encargo. O
mesmo pernoitou em sua casa, propagando a resistência, falando das lutas,
despertando o patriotismo, aliciando jovens e os recrutando como voluntários
para a luta ou procurando angariar apoios materiais como dinheiro, víveres,
armas, munições, animais e recursos em geral. O chefe de família, Gonçalo Alves
de Almeida, alegou que não tinha filho varão com idade (deveria já loi morrido
o seu filho Luiz do primeiro casal que então teria mais de 25 anos, naquela
data) e que seus escravos não tinham interesse de lutar. Assim, aguardaria o
desfecho da guerra para servir ao vencedor. Alguns biógrafos dizem que Maria
Quitéria, ali mesmo, no momento, pediu ao pai para ir lutai, o que ele
respondeu que lugar de mulher é em casa fazendo os trabalhos domésticos.
Desses
biógrafos, Pereira Reis Júnior, escrevendo sobre a heroína inicia "As
raras afirmativas que sobre a vida de Maia Quitéria fogem neste livro, ao
amparo do documento, são consagradas pela tradição oral". Isto favorece
os, estudiosos a dizerem que os livros sobre a heroína são versões
romanceadas., tal a escassez de dados e documentos concretos.
Assim, qual seria mesmo o nome daquele emissário?
ALISTAMENTO
A tradição passada de
boca em boca dá conta de que Maria Quitéria apaixonou-se por aquele emissário
da "Junta" que pernoitou na sua casa e que infelizmente a História
não deixou o registro do seu nome.
Seria o furriel João José
Luiz, do Batalhão dos Periquitos (furriel era um posto militar entre cabo e
sargento) ao qual se uniu na guerra?
O certo é que Maria
Quitéria decidiu fugir e se alistar, o que muitos afirmam ter sido em Belém de
Cachoeira, mais perto de São José, usando o sobrenome de Medeiros. A maioria
acha que foi, em Cachoeira mesmo, aproveitando a viagem do pai para ir vender
uma tropa de algodão ali. Há, também, quem escreveu que foi com o cunhado José
Cordeiro de Medeiros cm uma das suas viagens à feira de Cachoeira para vender
couros ou outras mercadorias produzidas na região.
Maria foi incentivada ou
aconselhada pela irmã casada, Tereza, a qual lhe teria dito que não iria também
por estar casada e prenhe do seu primeiro filho. Cortou-lhe os longos cabelos e
arranjou roupas do seu marido. Maria fugiu disfarçada.
Os brios patrióticos para
a Independência já estavam bastante estimulados, no meio do povo, principalmente,
depois que soldados portugueses invadiram o Convento de Nossa Senhora da
Conceição da Lapa, capital, no dia 20 de fevereiro de 1822, matando a destemida
sóror abadessa Joana Angélica e ferindo com coronhadas de fuzil o seu capelão,
padre Daniel da Silva Lisboa.
O fato indignou a
sociedade brasileira e católica em geral, agravada pelas mortes, saques,
invasões de lares, estupros, bebedeiras, perversidades e desmandos que os
soldados portugueses faziam. Já vinham há muito esta disputa e brigas pelo
Brasil, entre mestiços nascidos na colónia e autoridades, negociantes, senhores
de engenho, fazendeiros e colonos lusitanos a quem os brasileiros denominavam,
pejorativamente, de "marotos". O comandante português, querendo
recolonizar o Brasil, mandou uma lancha e uma escuna canhoneira patrulhar as
águas de Cachoeira e de São Félix. Os seus marujos om terra desfilavam
acintosamente, portando suas armas para intimidar os seus habitantes.
Por
tudo isto, as vilas baianas já preparavam a aclamação do Príncipe d. Pedro como
'Regente Perpétuo Constitucional e Protetor do Reino do Brasil' da mesma forma
como a Corte e a Cidade do Rio de Janeiro haviam feito. Cachoeira se antecipou
a todas as outras, com seu povo e autoridades saindo às ruas. Neste desfile do
dia 25 de junho, a canhoneira portuguesa abriu fogo danificando prédios e
matando o tambor-mor José da Silva Soledade, afogueando os ânimos dos baianos.
No outro dia, criou-se a Junta Interina Conciliatória e de
Defesa com a escuna bombardeando o cais do porto até o dia 28 quando patriotas
vão de canoas e prendem 28 marinheiros, todos já feridos. O povo volta às ruas
para comemorar.
A Junta organiza batalhões patrióticos para a guerra. Manda
emissários para o interior. D. Pedro envia o general francês Pedro Labatut para
organizai o "Exército Libertador".
A 7 de setembro, d. Pedro dá o "Grito de Independência
ou Morte", mas muitas Províncias resistem como a do Pará, a do Maranhão e
a da Bahia Neste mesmo mês, Maria Quitéria se alista como voluntária.
O experimentado Labatut desembarca em Alagoas onde recebe
voluntários pernambucanos, alagoanos e volta por terra via Sergipe, arranjando
mais adesões. Para, em Santana da Feira, em 27 de outubro e aqui estabelece o
seu quartel general recebendo mais forças que chegam do sertão e do Recôncavo.
O alistamento no Exército Libertador era uma oportunidade
para Maria Quitéria sair daquele marasmo de vida no campo, sempre entre animais
e ao lado das mesmas pessoas, parentes e vizinhos, como a amiga Maria
Hermenegilda de Oliveira. Só tinha oportunidade de ir à feira semanal de
Tanquinho ou de Santa Bárbara, bem como às missas dominicais com a família.
Evitaria assim também, mais rusgas com a madrasta e
problemas para o pai e irmãos.
Não se sabe o nome masculino que deu, mas ficou conhecido
como o Soldado Medeiros, nome de família do seu cunhado. A princípio, foi para
o Regimento de Artilharia.
A sua falta foi sentida pelo pai que resolveu requerer a sua
procura às autoridades de Cachoeira, depois de procurá-la pelas vizinhanças e
indagai os familiares. Entretanto, descoberto seu sexo, não foi expulsa e sim
legalizada a sua situação de combatente, passando para sentar praça na
Infantaria, devido ao seu porte franzino de mulher e pontaria certeira. Bem
como ao seu valor em ação.
O comandante do Batalhão de Caçadores, "Voluntários do
Príncipe", organizado pelo major José Antonio da Silva Castro, o apelidado
"Periquitão" porque o fardamento era azul com golas e punhos verdes
lembrando um periquito, gostava de vê-la atirar e lutar. Ele foi o avô materno
do futuro poeta Castro Alves, cantor da epopeia do "2 de Julho".
Entre os seus cantos, estão estes versos:
'Pede castigo p'ra
aqueles
Que assinaram a -
sentença -
- De - morte - a quem na
defensa
Lutava de seu país.
A mãe clama pelo
filho...
E pelo amante a
donzela...
Seus feitos e esta proximidade com seus
ancestrais, além das lendas, influenciaram e inspiraram mais o poeta quando
amou, precocemente uma mulher corajosa, a atriz portuguesa Eugenia Câmara,
desafiando convenções sociais e preconceitos morais.
E, quando, no fim de sua vida, em 1871, Castro Alves leu a
'Carta às Senhoras Baianas', na Associação Comercial da Bahia, segundo revela o
escritor Hélio Pólvora, deve ter lembrado da luta daquela heroína, como mulher:
"Ainda mais porque sois filhas desta magnífica terra da
América - pátria das utopias, região criada para a realização de todos os
sonhos de liberdade, de toda extinção de preconceitos, de toda conquista moral.
A terra, que realizou a emancipação dos homens, há de
realizar a emancipação da mulher. A terra que fez o sufrágio universal, não tem
direito de recusar o voto de metade da América.
Este voto é o vosso".
A sua situação de companheira do militar, João José, foi
oficializada pelo comandante que baixou a portaria em 31 de março de 1823
ordenando entregar o fardamento ao furriel João José Luiz e panos para que ela
fizesse um saiote à moda do "highlander" dos escoceses que ela viu
numa gravura.
Há quem diga que ela casou com o furriel na guerra, tendo o
capelão I Frei José de São Bento Damázio ministrado o sacramento e oficializado
a união, embora não exista o documento. Se aconteceu mesmo, perdeu-se o
documento, ficando na boca do povo como o "Amor na Guerra" que foi
imortalizado no quadro do artista Lênio Braga em um dos painéis da Estação
Rodoviária de Feira de Santana. Assim, não importa se entrou na luta por
patriotismo ou por amor. Uma vez na guerra, foi uma guerreira vencedora, representando
o povo, no ideal de formar uma nação.
HEROÍSMO NA GUERRA
Como soldado dos
'Periquitos', é possível que Maria Quitéria tenha lutado na Batalha de Pirajá,
em 8 de outubro de 1822, quando os portugueses correram apesar de terem a
vantagem. Após onze dias desta batalha, Madeira de Melo aliciou mais de
duzentos escravos prometendo dar-lhes a alforria. Eles atacaram os brasileiros
nas trincheiras de Mata Escura e do Saboeiro, mas foram derrotados, mortos e
presos. Cinquenta deles fuzilados depois. Houve 26 negras atacantes presas e a
estas foram aplicadas chicotadas.
Do lado brasileiro,
também havia negros combatentes, mas os senhores de engenho e fazendeiros só
aceitavam os libertos ou os que fossem escravos de portugueses, o que motivou
discórdias com o general Labatut que achava que qualquer um podia se alistar.
Maria Quitéria também
passou pela Ilha de Maré, em 29 de outubro quando o comandante foi ali
organizar a sua defesa. Depois, foi para a trincheiras de Itapuã, tendo o seu
batismo de fogo, na estrada da Pituba, ajudando a cercar a capital que estava
em poder das tropas do brigadeiro Madeira de Melo. Em Itapuã, penetrou numa
trincheira e prendeu dois Lusitanos, fato que repercutiu muito, fora das
fileiras militares e o general Labatut lhe concedeu as honras de 1ª cadete.
Além destes feitos heroicos, Maria Quitéria realizou outros
lances, corajosos como, em abril, quando combateu na barra do Rio Paraguaçu com
água até os seios chefiando outras mulheres contra os portugueses que queriam
furar o bloqueio da capital para arranjar mantimentos.
Sua fama virou lenda e quando as forças vitoriosas
penetraram em Salvador no 2 de julho de 1823, após famílias, negociantes e
militares portugueses terem fugido em 84 embarcações de madrugada carregando
tudo que puderam. Todavia, foram perseguidos pelo almirante inglês Lord
Cochrane, a serviço do Brasil, que aprisionou alguns barcos.
Ela vinha à frente dos soldados e vaqueiros encourados de
Pedrão, local que, na época, pertencia à São José. Ao lado do novo comandante
do Exército Libertador, coronel José Joaquim de Lima e Silva, tio do futuro
Duque do Caxias, desfilou no cortejo da vitória pela Estrada das Boiadas, no
bairro da Liberdade, recebendo flores, palmas, repiques de sinos das igrejas e
saudações das famílias nas janelas enfeitadas com colchas. Parou em frente ao
Convento da Soledade onde freiras pediram ao capelão interino, padre Antônio
José Gonçalves de Figueredo, para cingir a sua fronte com uma grinalda de
folhas verdes e floridas de cafezeiro que haviam tecido.
Dela, o coronel Lima e Silva disse, em relatório para o
Ministro da Guerra "Em toda a campanha, ela se distinguiu por indizível
valor e intrepidez".
Estes seus feitos e a sua condição de heroína, "a Joana
d'Arc brasileira", segundo o historiador Bernardino de Souza, ultrapassam
as fronteiras da Bahia. Ela foi incumbida de dar as boas novas à Corte,
desembarcando do navio "Leal Português" no Rio de Janeiro, no dia 17
de agosto de 1823, despertando a curiosidade popular com seu uniforme. Chegou
precedida de lendas pela imaginação fértil do povo. Ali, no dia 20, o Imperador
D. Pedro I, a recebeu, na capital do país, colocando ele próprio, em seu peito,
a insígnia de cavalheiro da "Ordem do Cruzeiro" em audiência pública,
concedendo-lhe mais o soldo vitalício de alferes de linha. Muitos intelectuais
acham que ali ela significou a nação que se formava e que era maior do que o
Imperador.
Maria Quitéria não quis recompensas materiais ou riquezas.
Apenas lhe pediu que expedisse uma ordem para que o seu pai lhe perdoasse por
ter fugido de casa e voltasse a lhe dar a bênção, o que o Imperador accedeu.
A sua passagem pela Corte do Império é descrita pela
escritora Maria Graham que ali se encontrava como preceptora dos filhos de d.
Pedro. Como inglesa, ela tinha uma educação mais liberal e admirou-se com a
conduta Feminina da outra Maria a quem convidou para visitá-la no dia 29.
A escritora achou que ela era morena, tendo traços
indígenas. Deveria saber com convicção isto porque, no dia seguinte, visitou
uma taba de índios Botocudos, no Rio de Janeiro.
O exemplo de Maria Quitéria fascinou gerações. É possível
que outra conterrânea cachoeirana, a Ana Nery, tenha ido ser enfermeira na
Guerra do Paraguai, seguindo seu exemplo.
Ou, se a heroína cearense Jovita Feitosa tenha se alistado,
no Piauí, intencionando lutar na Guerra do Paraguai, incentivada, também, por
ela. Depois de fardada, não a deixaram embarcar, no Rio de Janeiro para o
teatro de luta, deixando-a frustrada.
Ou, se Anita Garibaldi, em Santa Catarina, em 1835, tenha se
espelhado nela para largar o marido e entrar na Guerra dos Farrapos,
acompanhando o idealista italiano Giusepe Garibaldi.
Ou ainda, quem sabe, Maria Bonita, baiana de Santa Brígida,
há mais de 100 anos depois da Independência do Brasil, tenha também abandonado
o marido para seguir o cangaceiro Lampião pelos sertões do Nordeste, onde é
lido como herói por muitos. Acentuo aqui apenas o fato sem discutir se sua
companheira foi bandida ou heroína.
Entretanto, Maria Quitéria não foi a primeira mulher
brasileira a lutar como soldado, no meio de homens. A História documenta que em
12 de setembro de 1700, assentou praça em Lisboa uma brasileira de nome Maria
Úrsula de Abreu Lencastre que se disfarçou em trajes masculinos dando o nome de
Baltazar do Couto Cardoso. Nascera no Rio de Janeiro, em 1682 e leve um amor
contrariado, o que a fez arrastá-la para uma vida de aventuras fora do lar
paterno. Alistada, foi mandada para o Indostão e lá tomou parte om diversos e
importantes feitos militares. Tendo dado baixa em 1714, casou-se com um oficial
lusitano ali e recebeu de d. João V, uma pensão vitalícia, vindo a falecer em
Goa, onde gozava de estima por todos.
VOLTA AO LAR
Teria Maria Quitéria enviuvado de furriel?
O certo é que retorna sozinha à Bahia, recebendo muitas
honrarias por onde passava fardada e
montada a cavalo, como, em Belém e em Santana de Feira, a caminho da fazenda do
pai. Ia determinada a entregar-lhe a carta do Imperador e a recebe sua bênção.
O pai reconsiderou e ela ficou na sua casa que se transformou, praticamente,
num centro de romaria com lodos, querendo ver a sua heroína. Diversos convites
lhe eram feitos para visitar lugares. Atendendo a um desses convites de
parentes, foi a Coração de Maria em 1824, ficando na Fazenda Santa Tereza, no
lugar chamado Papagaio. Nos meses em que passou ali era conhecida por da. Maria
Alferes. Dali, foi a Pedrão, Irará, Lustosa e a outros povoados e fazendas. Há
até um arruado que se chama Quitéria naquele Município numa homenagem a ela,
segundo um velho morador, o Sr. Agostinho Nunes Pereira, o conhecido loiô Pituba.
Voltando à casa de seu pai, atendeu a um outro convite, indo
a Monte Alegre visitar uma irmã, a Francisca que era casada, e lá operou um
rapaz que tinha o pé gangrenado. Cortou-lhe a perna com a sua espada esquentada,
utilizando a prática que tinha aprendido na campanha.
Depois disso, contraiu
núpcias com uma pessoa de São José, o humilde lavrador Gabriel Pereira de
Brito, de quem falavam que tinha sido namorado antes de se alistar. O casamento
foi realizado em 1825. O pai lhe deu um dote. Teve uma única filha: Luiza Maria
da Conceição. Passou a viver, anonimamente, ficando viúva e passando
dificuldades. Sua madrasta ficou viúva, em 1834. O inventário do pai
arrastou-se até 1863, dez anos após morte, devido a disputas com a madrasta,
alguns irmãos e cunhados. Foi encerrado por sua única filha Luiza.
Maria Quitéria de Jesus faleceu em 21 de agosto de 1853, na
capital da Bahia, desgostosa, quase cega e em consequência de uma
"inflamação no fígado". Sua certidão de obtido foi assinada pelo
cônego Joaquim Cajueiro de Campos. Dá conta de que faleceu aos 56 anos e foi
sepultada no cemitério contíguo à Igreja matriz de Sant'Anna do Sacramento. Os
seus parentes ou responsáveis devem ter informado errado pois, nesta data,
deveria já ter 6I anos de idade.
Não se sabe onde repousam os seus ossos. Foram esquecidos no
tempo?
As homenagens merecidas à heroína são muitas. Entre ruas,
escolas, monumentos e outras iniciativas, está o decreto de I de julho de 1996,
do Presidente Fernando Henrique Cardoso concedendo a Maria Quitéria a honra
póstuma de ser patrono do Exército Brasileiro.
Assim, sua vida encanta e seduz ainda gerações. O povo não
lhe esqueceu e até eu já lhe rendi homenagem desenhando sua estampa militar e
lhe dediquei versos com o meu folheto de cordel:
"Maria Quitéria é
Símbolo de feminismo
De luta pelos
direitos
E pelo patriotismo
É a maior heroína
Do Brasil e do civismo".
NATURALIDADE
Devido à importância de
ser a maior heroína do país, bastantes lugares disputam a sua naturalidade,
como os Distritos de Maria Quitéria (antigo São José das Itapororocas), o de
Jaguara e o de Tiquaruçu. Também, os Municípios de Tanquinho, Santa Bárbara,
Santanópolis e Irará.
Tal disputa se deve
porque Feira foi emancipada em 1833 da Villa de Nossa Senhora do Porto de
Cachoeira, razão pela qual os cachoeiranos a têm como patrícia. Ela nasceu no
Sítio Licorizeiro. A sua localização hoje é difícil devido à posterior venda,
retalhamento ou incorporação de terras.
Como a Freguesia de São
José das Itapororocas era extensa, abrangendo enorme área territorial na qual
estavam incluídos Camisão, o atual Município de Ipirá, e de Pedrão, além do
arraial de Santana da Feira que virou o Município de Feira de Santana. Deste,
depois criaram os de Irará, o de Tanquinho e de Santa Bárbara. Ainda na
Freguesia de São José, estavam as capelas de Bom Despacho e de São Vicente que
viraram os Distritos de Jaguara e de Tiquaruçu.
Tudo indica que a
pendência é porque o pai de Maria Quitéria, após enviuvar, foi morar na fazenda
da Serra da Agulha com a terceira esposa, da. Maria Rosa de Brito. Esta
fazenda, que é descrita por Filinto Bastos como situada junto ao Rio Cipó, que
virou o Rio Calandrio e que desemboca no Rio do Peixe. Fica nos limites dos
Municípios de Tanquinho com Santa Bárbara, daí a procedência da afirmação do
escritor e reivindicações de naturais dali em ter a heroína como conterrânea.
Ou, em Jaguara, antigo Bom Despacho, que faz fronteira com
Tanquinho nesta Serra da Agulha, o que levou o conceituado historiador e
secretário do Bispado de Feira, padre Eleitor Araújo a afirmar que a heroína
era nascida lá.
A reivindicação de Tiquaruçu é porque a menina Maria
Quitéria foi batizada em sua igreja, achando seus defensores de que então
morava perto. Argumentam que naquele tempo, as distâncias percorridas eram a
pé, de carro de boi ou a lombo de animais o que dificultavam muito as viagens.
Recordam que não havia maternidade e as parturientes tinham filho em suas casas
assistidas por parteiras, na falta de médicos, tendo suas convalescenças nas
próprias residências. As estradas eram ruins e ficavam piores nos períodos
chuvosos, como naquele mês de inverno (julho) tendo que os pais esperarem
estiagens; conveniências dos padrinhos como as dos seus, Sr. Antônio Gonçalves
de Barros e sua irmã Josefa Maria de Jesus, moradores de "Água Fria",
local próximo dali. O padre foi Manoel José de Jesus Maria.
Ou, da espera pelas santas missões, uma vez que nem todas as
igrejas e capelas tinham sacerdotes. Os batismos, às vezes, eram feitos muito
tempo depois dos nascimentos. A certidão de batismo, ou o chamado batistério
equivalia à certidão de nascimento atual porque naquele tempo o Catolicismo era
a religião oficial do Estado e seus atos tinham valor legal. Assim, o batismo
de Maria Quitéria em São Vicente, não significa que tenha nascido em seu atual
território, nem na data registrada: 27 de julho de 1798.
Ou ainda, de acordo com informações do ancião de 92 anos,
Sr. Abílio Santa Fé, casado com uma descendente de José Cordeiro de Medeiros e
da irmã Tereza de Maria Quitéria, que acha ser a atual Fazenda
"Licorizal" que fica no Município de Santanópolis, desmembrado do de
Irará, ali perto da igreja de São Vicente. A fazenda pertenceu ao patriarca
Benzinho Campos e um dos seus descendentes, o advogado Amado Campos contou ao Sr.
Abílio que seu antigo nome era "Licurizeiro" e que sua família sempre
a engrandeceu comprando sítios e terras de vizinhos.
Ou, o local do seu nascimento ficaria mesmo no atual
distrito de Maria Quitéria e deveria a Prefeitura Municipal enfrentar o desafio
de localizá-lo o nele construir um parque, misto de lazer e de turismo,
reafirmando o nome de Maria Quitéria e documentando a sua história, segundo
sugestão do feirense Edivaldo Machado Boaventura, ex-Secretário da Educação e Cultura do Estado da Bahia.
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