O GOVERNO
ERA O ANO DE
1963.
A política
nacional fervia.
Havia um
descontentamento geral com as posições ideológicas do então presidente João
Goulart. Os grupos dominantes não estavam satisfeitos com as reformas
intencionadas pelo então presidente.
A UDN já se
articulava para fazer um grande levante nacional contra as reformas de base.
A Igreja se
confundia com o Estado.
Havia movimentos
contrários ao governo que articulavam aplicar um golpe de estado e destituir o
Presidente. A insatisfação era muito grande nos círculos militares. Havia,
naquele início da década, uma mudança no mundo.
As mulheres já se
articulavam pela sua emancipação. A juventude se rebelava contra as fórmulas do
conservadorismo. Estava acontecendo uma ruptura social. As estruturas arcaicas
ruíam enquanto davam lugar a uma modernidade constituída por uma geração
pós-guerra. Novos ídolos estavam surgindo no mundo todo. A penetração do
americanismo na cultura da América Latina era latente. O Brasil se
industrializava e novos padrões de consumo se estabeleciam. Mas, o medo das
mudanças do governo fez com que o ano de 1963 fosse agitado.
A Marcha da Luta
com Deus Pela Liberdade, com a campanha Ouro pelo Brasil, incentivou a vários
cidadãos a se disporem de suas joias para entregá-las ao governo, numa
esperança de que seria para pagar dívidas da nação e sair em busca de dias
melhores.
A Tradição
Família e Propriedade (TFP), movimento radical de direita, composta por jovens
vestidos a caráter, segurando estandartes pelo centro das grandes cidades,
insuflando a juventude a uma luta armada e praticando o terrorismo de direita.
As células, ditas comunistas, se proliferavam num movimento agitado de
resistência às novas idéias e ideais.
A pílula
contraceptiva colocou a Igreja numa posição delicada em relação às mudanças. A
Igreja, presa ao conservadorismo, não aceitava esse tipo de evolução. Novas
estações de TV e de rádio surgiram. Houve uma invasão de cultura externa no nosso
país. Os filmes na TV alienavam ainda mais a juventude, vendendo uma realidade
diferente da nossa.
Papai sabe tudo,
Roy Rogers, Bat Masterson, Lassie, Rim-Tim-Tim, Aventura Submarina, Perdidos
no Espaço, Vigilante Rodoviário, Nacional Kid e tantos outros seriados
apresentados traziam uma forma de vida invejável.
Os comercias, ou
reclames, como eram chamados naquela época, faziam com que a nossa sociedade
passasse a consumir cada vez mais. A indústria automobilística invadia nossas
ruas com modelos ultramodernos. Aos poucos, os carrões pretos eram substituídos
pelos DKW's, Vemaguet's, veio o Sinca Chambord, Sinca Três Andorinhas, Rural
Willys, Aero Willys, o Fusca, o Fuscão e tantos outros carros passaram a
fazer parte da nossa paisagem urbana.
A indústria
alimentícia cada vez mais oferecia produtos industrializados, facilitando a
vida das donas de casa. Passou-se a consumir muito mais pela embalagem bonita
do que pela qualidade do produto oferecido.
No vestuário, as
mulheres saíram ganhando. Desapareceram os saiotes, as anáguas, os corpetes.
Cada vez mais as mulheres passaram a usar cada vez menos.
Nas praias vieram
os biquínis.
O poético e
romântico Rio de Janeiro daquela época ditava a moda nacional. Havia um ar de
ingenuidade naquela juventude que andava de Lambreta e Vespa. As moças andavam
de mini-saia, a grande sensação da época. Meias de náilon com costura atrás,
que deixava as pernas mais sensuais. Cabelos com penteado Page, franginha,
permanente, enchimentos, laquês.
Surgiam as
primeiras lanchonetes. As gasosas já se bebiam com o revolucionário canudinho,
feito em papel parafinado. As belas refresqueiras que jorravam o refresco numa
cascata colorida e a gente ficava horas admirando aquela inovação. Os
sanduíches de três ou quatro andares. Tudo era novidade num país que estava
adormecido no tempo. A Revista do Rádio que depois passou a se chamar Revista
da TV, trazia fotos dos artistas famosos da época que faziam muita gente
suspirar e até invejar seu modo de vestir a exemplo de Elvis Presley, Virginia
Lane, Carmem Miranda, embora falecida em 1954, ainda empolgava com a sua
maneira de se trajar, com roupas coloridas e tamancos altos.
A Radio Nacional
do Rio de Janeiro, com seus programas de auditório causavam na juventude
daquela época um verdadeiro delírio, na vontade de conhecer de perto seus
ídolos. As radionovelas faziam a juventude suspirar, abstraindo-se com as
histórias de amor. As fotonovelas também aguçavam o imaginário, nasciam ídolos
e ícones românticos em cada época.
Roberto Carlos já estourava nas rádios com Parei na Contramão. Erasmo Carlos e sua Festa de Arromba. Gírias estavam se proliferando no meio jovem, fazendo com que criassem dialetos diferenciados e exemplo de: legal; cara; arromba; mixou o carbureto. A grande sacada do momento era conseguir no contrabando uma calça Lee, desbotada, de preferência, e que muitos jovens quando não podiam comprar uma, pegavam uma calça de brim e colocavam de molho na água sanitária para fazê-la desbotar.
Era, em verdade,
uma mudança radical nos costumes de uma nova geração que estava surgindo.
Os Beatles já ditavam a moda dos cabelos compridos para homens. Foi talvez o maior símbolo da rebeldia masculina, numa época em que um jovem pra usar calça comprida tinha que pedir permissão ao pai.
Pois, foi neste
país de costumes arcaicos e que de repente se viu uma mudança radical, que
entramos na revolução social sem darmos conta de que
estávamos embarcando numa viagem perigosa, onde hoje não se tem controle da
violência urbana, onde a vida não tem valor, onde as drogas dominam a sociedade
que se dizia organizada, onde se perdeu a noção de limites, onde direitos
sobrepõem os deveres, onde o governo não constrói escolas, mas investe em
presídios, onde a mídia fabrica heróis e vilões. Enquanto “evoluíamos” nos
estereótipos, degradávamo-nos na dignidade.
Mas voltemos a
nossa cidade de Nossa Senhora das Dores, que não foi diferente das outras
cidades. Lá também tudo isso acabou chegando de repente.
Coronel
Salustiano estava assustado com a transformação da cidade que ajudou a
construir. Estava assistindo a tudo com um olhar crítico e ao mesmo tempo
preocupado com seus filhos que já estavam adolescendo. Essas transformações
sociais mexiam muito com a sua formação arcaica de sertanejo rude, acostumado
com padrões rígidos de comportamento.
Após o discurso
da Candelária, proferido pelo presidente João Goulart, no início do mês de março
desse ano, o coronel Salú recebeu um telegrama urgente, convocando-o para uma
reunião em Recife, na sede do seu partido, a UDN.
Ao chegar à
reunião, ficou sabendo, em caráter sigiloso, que estava em curso um movimento
militar para destituir o presidente da República e dar um golpe de Estado.
Todos aqueles que estavam com o governo Goulart seriam destituídos dos seus
cargos e os que resistissem ou tivessem qualquer envolvimento com o partido
comunista, seriam presos ou exilados.
O coronel voltou
assustado com a notícia, ainda mais quando lhe disseram que ele assumiria a
Prefeitura de Nossa Senhora das Dores, em substituição ao prefeito Gilberto.
Retornou à sua
cidade sentindo que carregava um enorme peso nas costas, mas mesmo assim, a
vaidade falou mais alto, afinal de contas ele, coronel Salú, havia sido
derrotado pelo prefeito Gilberto nas ultimas eleições.
O coronel sabia
que o povo estava satisfeito com a nova administração. O prefeito Gilberto
havia construído nos fundos da prefeitura a Farmácia do Povo, vendendo remédio
barato, e o povo que adora se automedicar lotava a farmácia pra comprar
vitaminas. Não sei por que o povo adora uma vitamina e “remédio de verme”.
Algumas ruas já
estavam sendo calçadas a paralelepípedo, ou estavam sendo patroladas. A
Praça da Matriz foi totalmente modificada. Arborizaram os canteiros, colocaram
meio-fio demarcando a rua, enfim, a cidade tinha um aspecto mais humano e
urbano.
O novo delegado
da cidade era chefe do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e estava fazendo uma
campanha social cuja finalidade era educar a juventude para a formação de
cooperativas.
Certo dia chega à
cidade um caminhão vindo de São Paulo, carregado com luminárias e seus
respectivos braços metálicos para fixação nos postes, para dotar a cidade de um
moderno sistema de iluminação pública. Como o caminhão chegou ao final da
tarde, só pode ser descarregado à noite. Um olheiro do coronel foi correndo até
a fazenda informar que um caminhão havia chegado carregado com armamento
pesado, fruto de uma encomenda feita pelo prefeito para se fortalecer numa
provável luta armada contra o exército brasileiro.
O coronel
bastante assustado perguntou:
- O que você está dizendo?
- É isso mesmo coronel, chegou um caminhão
de armas na cidade.
- E onde está esse caminhão?
- Até a hora que eu vim pra cá, ele estava
na porta da prefeitura.
- Mas já descarregou esse tal caminhão?
- Não sei não senhor...
- Já anoiteceu, acho que só vão descarregar
amanhã pela manhã e eu vou ver isso de perto. Volte pra cidade e qualquer
coisa me avise. Amanhã eu me encontro com o senhor logo cedo.
- Tá certo, coronel, amanhã eu me encontro
com o senhor.
O coronel se sentou na
varanda, contemplou o tempo e preocupado, batia com um chicote de couro na
panturrilha da sua bota, num ritmo constante como se tivesse uma cadência.
Seu Roberto, que
já o conhecia há muito tempo, se aproximou e perguntou:
- O coronel tá preocupado com o quê?
- Seu Roberto, estamos caminhando para uma
revolução armada...
- O quê?
- É isso que o senhor ouviu... Uma
revolução armada aqui na nossa cidade, que já foi um dia muito pacata, mas
agora está nas mãos dos comunistas.
- Coronel? O que o senhor tá dizendo?
- Isso que o senhor ouviu... Tem um bando
de comunistas tomando conta da cidade... Vamos ter que reagir de forma
enérgica, colocar um por um na cadeia. Vamos torturar, matar, vamos fazer com
que eles confessem onde estão todos os outros... Vamos buscar cada um deles,
matar, esquartejar, meter o cacete e limpar a cidade.
O coronel estava
furioso com tudo aquilo. Seu ódio era maior que a razão.
Seu Roberto, que
não sabia que diabos era comunista, correu pro seu quarto e se escondeu,
morrendo de medo. Que diabos seria comunista? Passou a noite em claro, num
verdadeiro pânico; afinal, o coronel falou que a cidade fora invadida por
comunistas e ele nem sabia o que era.
Ao amanhecer, seu
Roberto entra na cozinha de fogão à lenha e Victória Régia estava preparando o
café da manhã, quando seu Roberto se aproxima dela e pergunta baixinho?
- Ocê sabe o que é cumunista?
Victória Régia,
na sua santa ignorância, pensa que seu Roberto está procurando ousadia e
responde:
- Acho mió ocê caçá o que fazê, eu sei o
que é cumunista, mas não vô dá prá ocê nunca. Meu cumunista não dô pra ninguém
e se ocê ficá insistino vô contá pra dona Mengarda que ocê tá procurano
vadiage comigo.
- Oxe mulé... O coroné mi disse que a
cidade tá cheia de cumunista, num preciso do seu, é só eu saí que pego um
monte.
- Intão, vá caçá outro... O meu eu levo no
caixão comigo... Ninguém toca nele...
- Num sei por que ocê guarda tanto... O
coroné me disse que vai pegar seu cumunista, vai torturar e meter o cacete...
Victória Régia
deu um grito saiu correndo e assustada foi procurar D. Emengarda pra contar o
que estavam planejando fazer com ela.
Seu
Roberto, agora já sabia o que era cumunista. Balançou a cabeça deu um sorriso e
foi dormir um pouco.
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