Antonio Edson, Santanopolitano.
Repassando ZAP
Na Itália foi diferente do restante da Europa.
Uma diferença importante foi que, durante muito tempo, a Itália sequer foi um país.
Ela só se unificou bem tarde em 1861 (39 anos depois do Brasil ser independente e apenas 28 anos antes do Brasil se tornar uma República), até então, era uma península de cidades-Estado em guerra entre si, dominadas por orgulhosos príncipes locais ou por outras potências europeias.
Partes da Itália pertenciam à França, partes à Espanha, partes à Igreja, e partes a quem quer que conseguisse conquistar a fortaleza ou o palácio local.
O povo italiano se mostrava alternativamente humilhado e conformado com toda essa dominação.
A maioria não gostava muito de ser colonizada por seus co-cidadãos europeus, mas sempre havia aquele bando apático que dizia:
“_Franza o Spagna, purchè se magna” que, em dialeto,
significa:
“_França ou Espanha, contanto que eu possa comer".
Toda essa divisão interna significa que a Itália nunca se
unificou adequadamente, e o mesmo aconteceu com a língua italiana. Assim, não é
de espantar que, durante séculos, os italianos tenham escrito e falado dialetos
locais incompreensíveis para quem era de outra região.
Um cientista florentino mal conseguia se comunicar com um poeta siciliano ou com um comerciante veneziano (exceto em latim, que não chegava a ser considerada a língua nacional).
No século XVI, alguns intelectuais italianos se juntaram e decidiram
que isso era um absurdo.
A península italiana precisava de um idioma italiano, pelo menos na forma escrita, que fosse comum a todos. Então esse grupo de intelectuais fez uma coisa inédita na história da Europa; escolheu a dedo o mais bonito dos dialetos locais e o batizou de italiano.
Para encontrar o dialeto mais bonito, eles precisaram recuar duzentos anos, até a Florença do século XIV.
O que esse grupo decidiu que a partir dali seria considerada a língua italiana correta foi a linguagem pessoal do grande poeta florentino Dante Alighieri.
Ao publicar sua “Divina Comédia”, em 1321, descrevendo em detalhes uma jornada visionária pelo Inferno, Purgatório e Paraíso, Dante havia chocado o mundo letrado ao não escrever em latim.
Considerava o latim um idioma corrupto, elitista, e achava que o seu uso na prosa respeitável havia “prostituído a literatura”, transformando a narrativa universal em algo que só podia ser comprado com dinheiro, por meio dos privilégios de uma educação aristocrática.
Em vez disso, Dante foi buscar nas ruas o verdadeiro idioma florentino falado pelos moradores da cidade (o que incluía ilustres contemporâneos seus, como Boccaccio e Petrarca), e usou esse idioma para contar sua história.
Ele escreveu sua obra-prima no que chamava de dolce stil nuovo, o “doce estilo novo” do vernáculo, e moldou esse vernáculo ao mesmo tempo que escrevia, atribuindo-lhe uma personalidade de uma forma tão pessoal quanto Shakespeare um dia faria com o inglês elizabetano.
O fato de um grupo de intelectuais nacionalistas se reunir muito mais tarde e decidir que o italiano de Dante seria, a partir dali, a língua oficial da Itália seria mais ou menos como se um grupo de acadêmicos de Oxford houvesse se reunido um dia no século XIX e decidido que – daquele ponto em diante – todo mundo na Inglaterra iria falar o puro idioma de Shakespeare.
E a manobra realmente funcionou.
O italiano que falamos hoje, portanto, não é o romano ou o
veneziano (embora essas cidades fossem poderosas do ponto de vista militar e
comercial), e sequer é inteiramente florentino.
O idioma é fundamentalmente dantesco.
E, talvez, nenhum outro idioma jamais tenha sido tão
perfeitamente ordenado para expressar os sentimentos humanos quanto esse
italiano florentino do século XIV, embelezado por um dos maiores poetas da
civilização ocidental.
Dante escreveu sua “Divina Comédia” em terza rima, terça rima, uma cadeia de versos em que cada rima se repete três vezes a cada cinco linhas, o que dá a esse belo vernáculo florentino o que os estudiosos chamam de “ritmo em cascata” - ritmo esse que sobrevive até hoje no falar cadenciado e poético dos taxistas, açougueiros e funcionários públicos italianos.
A última linha da “Divina Comédia”, em que Dante se depara
com a visão de Deus em pessoa, é um sentimento que ainda pode ser facilmente
compreendido por qualquer um que conheça o chamado italiano moderno.
Dante escreve que Deus não é apenas uma imagem ofuscante de
luz gloriosa, mas que Ele é, acima de tudo, l’amor che move Il sole e l’altre
stelle... “O amor que move o sol e as outras estrelas...”
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