Nossa história
começa num passeio corriqueiro entre dois personagens que caminham na Rua
Conselheiro Franco: Arlindo e Henrique. Arlindo havia ido buscar seu neto
Henrique no curso de teatro no prédio do CUCA - Centro Universitário de Cultura
e Arte. Henrique estava intrigado, pois o seu professor havia lhe contado um
pouco da história do prédio que, no passado, sediara a Escola Normal. Este,
quando encontrou seu avô, começou a contar as histórias que tinha ouvido na
aula de teatro. Com um sorriso caloroso, Arlindo virou-se para seu neto e
falou:
— Eu sei, foi aqui que sua avó
estudou. Já vivi tantas coisas nessa rua, que todas as vezes em que passo aqui
não consigo esquecer.
Henrique,
tomado por uma grande curiosidade, pediu para seu avô lhe contar um pouco dessas
histórias. Arlindo, então, convidou seu neto para caminhar pela Conselheiro
Franco e começou a narrar o que lhe vinha à memória:
—Meu querido
neto, a memória é um livro antigo mágico, o qual eu não me canso de ler; é como
se eu pudesse me transportar para suas páginas, para a Feira de Santana da
minha mocidade. Inicialmente, tudo acontecia na Rua Conselheiro Franco, “a rua
movimento”, antiga Rua Direita. Ao longo desta via, localizavam-se as sedes das
filarmônicas, a Escola Normal, o Grêmio Rio Branco, a Pensão Universal, o Clube
Coreográfico Dois de Julho e o Cine-Teatro Santana. Seguindo a direção sul,
chegava-se à Igreja Matriz e à grande praça
ajardinada com seu coreto, palco de diversas manifestações; ao norte, o destino
seria a Igreja dos Remédios. Apesar de fazer fronteira, de um ponto ao outro,
com grandes marcos religiosos da cidade, tal espaço, em seus passeios e
prédios, era cenário para diversões, diferentes bailes, espetáculos teatrais,
sessões de filmes, folias de Momo, palestras e saraus, além, é claro, dos
próprios festejos religiosos. Assim era a Rua Direita, que, nas três primeiras
décadas do século XX, concentrava as agremiações culturais da urbe feirense.
— Mas foi na porta do Cine-Teatro Santana que eu vi
sua avó Antônia pela primeira vez: ela estava acompanhada da tia solteirona,
Izabel, e da sua prima Sofia. Ai, aquele Cinema! Tantas recordações... tantas
alegrias... lugar que me fazia viajar sem sair das poltronas. Na década de
1920, havia também o Cine Brasil, porém era o Santana que causava furor nos
jovens da cidade. Até onde minha mãe, Dona Arlinda Sampaio, me contava, o
Teatro Santana datava mais ou menos do início da década de 1840 do século XIX,
quando foi mencionado “em uma correspondência oficial endereçada à Câmara
local, a orientação para que fossem realizadas, no referido teatro, as sessões
legislativas”, visto que, nesse período, a Câmara não tinha local específico
para realizar seus trabalhos. Em 1919, passou a ser o sucessor do Cinema
Vitória, sendo chamado de Cine-Teatro Santana, porque, além dos espetáculos
teatrais, foram incorporadas as exibições de filmes. Situado na esquina da
antiga Rua Direita (atual Rua Conselheiro Franco) com a Rua 24 de Maio, num
terreno pertencente à Santa Casa de Misericórdia, que arrendava o prédio para
quem quisesse explorar as funções comerciais do estabelecimento. Posso citar
como arrendatários do Cine-Teatro Santana: Raul Ferreira da Silva, José Calmon
de Siqueira e Elziario Santana.
Nova fachada do Cine-Teatro Santana Fonte: acervo particular do santanopolitano Carlos Alberto Mello |
Arlindo prosseguiu:
— Segundo a
senhora minha mãe, na década de 1920 quem tomava conta do saudoso Santana era o
senhor Raul Ferreira da Silva, que na época era diretor do jornal Folha do
Norte, irmão do político Arnold Silva. Pelo que se soube na cidade, o senhor
Raul F. da Silva enfrentou algumas dificuldades, a exemplo de
problemas técnicos com os cinematógrafos. Antes que você me pergunte o que é um
cinematógrafo, eu lhe explico, Henrique. O cinematógrafo era a máquina que
projetava a imagem na tela. Mas, voltemos ao senhor Raul: este ainda tinha que
enfrentar a concorrência com o Cine Brasil, pertencente ao Sr. Francisco Soares
Bahia, sobrinho do Cel. Bernardino Bahia - o que teria contribuído para que as
finanças do Cine-Teatro Santana nesse período fossem conturbadas. Essa disputa
acabou por fechar os dois estabelecimentos, tanto o Cine Brasil quanto o
Cine-Teatro Santana, o que fez seu Raul F. da Silva passar o arrendamento do
Santana para outra pessoa. No início da década de 1930, o Cine-Teatro passou a
ser arrendado pelo Sr. Calmon de Siqueira, que realizou uma reforma das
instalações, trocando seu mobiliário e instalando equipamentos, justamente para
as exibições dos filmes falados, uma novidade naquela época, visto que os
filmes exibidos antes, eram mudos.
Divulgação de um filme, Fonte:Museu Casa do Sertão |
Henrique, com uma cara de espanto, interrompeu seu
avô:
—Fala sério, vô!
Eu não acredito! Filmes mudos!
Dando uma risada, Arlindo retomou a fala:
—Sei que para você,
que vive no meio dessas parafernálias que a modernidade inventou, é difícil
acreditar. Um dia desses vamos assistir a um filme mudo de um dos maiores
atores do cinema, Charlie Chaplin. Voltemos à historinha do Cine-Santana, que,
na década de 1930, reinou pleno. O Sr. Calmon, entretanto, acabou sendo nomeado
para o cargo de escrivão do Tribunal de Contas em Salvador, o que o
impossibilitou de continuar administrando o Cine-Teatro Santana, que, mais uma
vez, mudava de mãos. Em 1938, quando eu comecei a frequentar as matinés do
cinema, quem o dirigia era o Sr. Elziario Santana, membro do Grêmio Dramático
Salles Barbosa. Eu me lembro bem que no anúncio de reinauguração tinha o filme
O Rei e a Corista, e nas semanas seguintes Cleópatra (1938) e Robin Hood (1938). Nas sessões destinadas às crianças, aconteciam sorteios
de brindes; aos domingos, havia uma sessão chique onde se exigiam os melhores
trajes, e, algumas vezes, o público era recepcionado com uma banda musical - diferentemente das sessões ocorridas nas segundas- feiras populares. Henrique,
nas segundas-feiras é que era diversão, pois era o dia em que, geralmente,
passavam as sessões dos meus filmes prediletos: os de faroeste, ou melhor, de
dizer, de cowboys, com o ator Tom Mix, e os de terror com Bela Lugosi. Eram
sessões lotadas e agitadas, com uma verdadeira gritaria na plateia, que torcia
pelo mocinho. Mas confesso que nas minhas idas ao Santana, o que mais me marcou
foi assistir às séries de Flash Gordon, com os foguetes e as pistolas; eu
ficava fascinado, viajando naquela ficção. Henrique interrompeu-o novamente:
—Vô, esse tal de Flash Gordon é tipo um super-herói,
como o Homem de Ferro?
Arlindo acenou com a cabeça, afirmando que sim. A caminhada dos dois termina. Henrique, com os pensamentos fervilhando após tantas informações, perguntou:
—Um dia desses me mostra onde fica esse Cine-Teatro
Santana?
Arlindo, com os olhos emaranhados pela tristeza,
respondeu:
—Já estamos de frente para ele.
Henrique, confuso, disse:
—Vô,
está ficando maluco? Aqui não tem nada, a não ser o estacionamento de carros.
Arlindo respondeu:
—Pois é,
antigamente ele ficava aqui, mas já não existe mais, a não ser na minha
memória. A máquina da modernidade, há muito tempo, vem demolindo pedaços da
nossa história.
Henrique:
—Que triste, eu queria explorar o lugar em que você
conheceu a vovó, saber qual era o filme que estava passando na época.
Arlindo:
—Não foi numa sessão de filmes, foi em
uma apresentação do grupo dramático Taborda. Só que essa história é para outro
dia; vou deixar que a sua avó lhe conte, afinal, ela era uma das fãs do Taborda.
Foto interna do Cine-teatro Santana. Fonte acervo particular do santanopolitano Carlos Mello provavelmente se refere a década de 40. |
Aline Aguiar Cerqueira dos Santos
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