Evandro J.S. Oliveira |
Os grandes projetos econômicos abriram clareiras na floresta amazônica e
nela instalaram o capitalismo mais moderno do mundo.
Daniel Ludwig |
Em 1976 o Projeto Jari encomendou um documentário
de quase meia hora de duração a Jean Manzon. Era um momento delicado. Nove anos
antes o bilionário americano Daniel Ludwig, do alto dos seus 70 anos, sucedera
um grupo de empresários portugueses estabelecidos em Belém no controle da vasta
área de terras que fora do coronel (da Guarda Nacional e de barranco) José
Júlio de Andrade, imensamente poderoso até a revolução de 1930 (quando o
tenente Magalhães Barata o tomaria por inimigo). A compra dos ativos da Jari
Comércio e Industria custara a Ludwig três milhões de dólares.
Era o maior — e mais complicado — imóvel rural de
que alguém poderia se tornar dono na Amazônia. Os detentores dos muitos papéis
depositados em vários cartórios achavam que eles lhe davam direito a 3,6
milhões de hectares. Depois de apurar melhor as coisas através dos seus
advogados, Ludwig se satisfaria com menos da metade, “apenas” 1,6 milhão de
hectares.
Na foz do rio Amazonas, porta de entrada para uma
nova fronteira de recursos naturais quase do tamanho dos Estados Unidos, a
possessão de um dos homens mais ricos e estranhos do mundo incomodava e
provocava reações diversas. Mesmo alguns setores militares, que sustentavam o
governo, estabelecido através de golpe de estado em 1964, desconfiavam daquele
grande projeto. Mais do que projeto, era um império, funcionando como se
constituísse um autêntico país dentro do Brasil. Seria uma ponta-de-lança do
governo americano?
Jari 1 |
Centenas de milhões de dólares estavam sendo
investidos para criar duas cidades de porte razoável para o padrão regional e
outras 10 menores, as silvivilas, para cuidar dos plantios, que se estenderiam
por quase 100 mil hectares. Calculava-se que a população desse território com ares
de autonomia logo passaria de 100 mil habitantes. O exército de máquinas
pesadas e equipamentos, como nunca antes houvera na selva amazônica, abria
quase 900 quilômetros de estradas por ano.
Os carros se abasteciam de combustível grátis e
ilimitado. Havia hospital, médicos, remédios à vontade. Quatro pistas de pouso,
sendo uma equivalente ao dos grandes aeroportos, tinham movimento diário. Uma
empresa de navegação fazia linha para Belém e uma frota de aviões levava e
trazia passageiros constantemente, vários deles estrangeiros. Uma ferrovia de
70 quilômetros ligava a fábrica às plantações.
Jari 2 |
Mais do que uma empreitada econômica, o “grande
projeto” parecia materializar uma concepção de poder. Ameaçava criar um governo
paralelo na Amazônia. Tocava nos nervos da “comunidade de segurança e
informações”, a espinha dorsal do regime militar, que, com sua doutrina de segurança
nacional, promovia a integração da Amazônia justamente para não entregá-la a
estrangeiros.
O filme encomendado a Jean Manzon tinha o propósito
de dizer aos guardiões da segurança nacional que o Jari, espraiado entre o Pará
e o Amapá, continuava brasileiro e teria uma destinação de grandiosidade igual
à dos grandes projetos do governo militar. Manzon não foi escolhido por acaso:
seus documentários trombeteavam a pujança das iniciativas que o governo tomou a
partir de 1964, promovendo a mais ampla ocupação física da fronteira amazônica,
como nunca houve (e, provavelmente, nem haverá). Do dia para a noite, em vários
pontos da região, a vida pulou do zero para o 80, graças a desbravadores sem
igual, autênticos titãs, a abrir caminho para a modernidade, como no Jari
(ainda que à custa de um desmatamento sem paralelo na história da humanidade,
conflitos sociais, criminalidade, desorganização social). No lugar de uma
economia de subsistência ou de uma atividade extrativa de exportação limitada à
madeira, à castanha, à pimenta-do-reino e (em escala decrescente) à borracha,
surgia o capitalismo de ponta, importado diretamente do seu maior templo, os
Estados Unidos.
Técnicos e executivos foram recrutados em vários
lugares do mundo para trabalhar em ritmo alucinante. Septuagenário, apesar da
sua disposição para novas aventuras, Ludwig tinha pressa para colher os
resultados das suas iniciativas. Seu principal objetivo era produzir celulose, mas
para isso tinha que plantar árvores, que demoram a crescer, mesmo sob o sol
eterno dos trópicos. Ele também queria bater recordes mundiais com o plantio de
arroz nas várzeas, numa área que deveria chegar a 14 mil hectares. Formaria o
maior plantel de búfalos do mundo. Montaria serrarias e fábricas de laminados.
Construiria sua própria hidrelétrica. E seria como que um misto de Tarzan e Tio
Patinhas, um rei da selva com muito dinheiro e poder, a ser admirado pelo
mundo. A ficar ainda mais rico.
Em 1976 Ludwig, passando por cima da indústria
nacional, que se julgava em condições de atender suas necessidades, já havia
encomendado ao estaleiro japonês da Ishikawajima, do qual era sócio, dois
autênticos navios, que durante três meses singrariam 25 mil quilômetros por
mares e oceanos do Japão até o Jari. Numa dessas estruturas metálicas
funcionaria uma termelétrica à base de cavacos de madeira. Na outra, uma
fábrica de celulose com a altura de um prédio de 10 andares, alimentando-se de
uma árvore oriental milagrosa, que daria o primeiro corte com dois anos, quando
já teria 10 metros de altura, e proporcionaria três desbastes em 10 anos, quando
sofreria corte raso e seria substituída por outra árvore: a gmelina arbórea.
Com a música ufanista ao fundo e a locução de
marcha de combate, o documentário de Jean Manzon proclamava, sem qualquer
sutileza, que Ludwig iria substituir uma floresta velha por outra, inteiramente
nova (árvores que, apesar de velhas, “se conservavam sadias”, acrescentava o
locutor, sem se dar conta da contradição).
“Não existe problema ecológico, já que se troca uma
floresta por outra”, acrescentava o narrador. A mata nativa tinha o
inconveniente de abrigar 500 espécies diferentes por cada hectare (a
biodiversidade, tão exaltada hoje). Haveria ganho ao trocá-la por uma floresta
homogênea, embora de espécies exóticas, que daria lenha para a geração de
energia e cavaco para a produção de celulose. Não podia dar errado: havia
dinheiro suficiente (até um bilhão de dólares) e a melhor tecnologia do planeta
para sustentar aquela intervenção tão profunda na natureza, como nunca antes na
Amazônia.
Daniel Ludwig colocou em funcionamento os dois
primeiros “grandes projetos” dessa nova era em que, de fato, a Amazônia foi
definitivamente integrada ao espaço em torno dela (e muito mais ao longe). Mais do
que a integração nacional (para não entregar) dos militares geopolíticos, a
ligação ao mundo, sem possibilidade de retorno ao status quo ante.
Primeiro foi a Cadam, a primeira fábrica de caulim da Amazônia e destinada a
ser a maior do mundo, quebrando o controle que tinham do mercado internacional
os Estados Unidos e a Inglaterra, graças à qualidade do minério (o melhor para
revestimento de papéis especiais, como o que dá brilho às revistas semanais de
informações). Depois, a fábrica de celulose, em maio de 1979.
Apenas 11 anos depois que começou a pôr a mata
nativa abaixo e plantar gmelina, pinho e eucalipto, numa pressa que lhe seria
onerosa no futuro, teve que desistir da árvore asiática porque os solos,
fracos, não deram conta da sua voracidade por nutrientes. A conversão de parte
da plantação, com a fábrica em plena operação, deixou o Jari sem matéria
suficiente durante alguns anos.
Ludwig concebeu duas plantas industriais, que
produziriam 1,5 milhão de toneladas, mas hoje só uma funciona, mesmo assim
produzindo apenas 360 mil toneladas. E não mais sob o controle dele ou do seu
esquema empresarial. Em 1982 o tycoon foi substituído por um
consórcio de empresas nacionais, formado às pressas pelo então todo-poderoso
ministro Delfim Netto, no último governo militar, o do general João Figueiredo.
Senão, o Jari teria que ser estatizado. Seus maiores credores eram o Banco do
Brasil e o BNDES.
Ludwig montou o império à base de financiamentos
internacionais, atuando dos dois lados do balcão. Mas com o primeiro choque do
petróleo e a inflação mundial, o custo ficou alto demais e ele não quis
bancá-lo (receoso de comprometer sua fortuna). O tesouro nacional, avalista de
suas operações mirabolantes, teve que honrar os compromissos, quando eles
começaram a vencer. E continuou comparecendo ao caixa dos banqueiros internacionais,
sem se ressarcir no controle acionário, transferido para o consórcio de
empresários nacionais reunidos a toque de caixa por Delfim. Augusto Antunes
liderou o grupo. Seus netos o sucederam, mas não manifestaram qualquer
interesse pelo negócio na selva. Em seu lugar surgiu o empresário paulista
Sérgio Amoroso, do grupo Orsa, que mantém o Jari funcionando, mas já numa
escala de negócio comum, não de empreendimento político, de império.
Não deixa de ser surpreendente que as três
principais atividades produtivas do Jari (caulim, celulose e bauxita
refratária) continuem em plena atividade, 30 anos depois, ainda que numa escala
própria aos mortais, não de um mito como Daniel Ludwig (que morreu seis anos
depois de ter saído de vez da Amazônia).
Hoje, há uma consciência que não se pode derrubar a
floresta velha, de árvores impressionantes, com dezenas de metros de altura,
porque a biodiversidade é descartável e novas florestas de espécies estranhas
ao bioma são melhores. Agora é preciso apresentar os estudos e relatórios de
impacto ambiental, contratar currículos lustrosos e dispor de relações públicas
de maior credibilidade do que um Jean Manzon, o fotógrafo francês que veio para
o Brasil exercer sua arte jornalística e acabou se transformando no pregoeiro
das mistificações visuais do governo e dos seus parceiros. Será que atualmente
querem revogar, estes entraves nome do progresso?...
Agora os projetos de mineração foi centuplicado,
mas é assunto para outra série. Uma vez mais a floresta saiu ferida, mas ganhou
outro round.
Fontes:
Lúcio
Flávio Pinto, Wikipédia, a enciclopédia livre.
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