Fazer o quê? Era quase impossível lutar contra a
sensação de derrota, de desamparo. De concreto, daquela mulher tão amada
restara a fotografia, teimosamente permanente em seu porta - cédulas e tantas
vezes beijada nos momentos de solidão, embora ela houvesse sido tão real, tão
presente em sua vida... Já haviam sido decorridos seis longos meses, debatendo-se contra as lembranças, precisando
de isolamento, de se tornar ilha. Ao vê-la de novo amor concluiu que o melhor
remédio para dor de cotovelo era cair nos braços de uma nova mulher. Precisava
fazer isto, o amor próprio ferido, não podia continuar só. Decidiu procurar
alguém que lhe completasse, sem sucesso. Não tinha coragem e nem era mais
nenhum garoto para sair por aí fazendo suspirar corações femininos! Assim,
ficou retraído, quase não comparecia a algum evento ou festa. Sua rotina era de
casa para o trabalho e do trabalho para casa. Via tudo no horário nobre da TV,
desligava o aparelho e tentava dormir. Virava de um lado para o outro na cama,
pensando em Monica, sem conseguir dormir, a ausência da amada a lhe torturar. A
frustração, o sentimento de perda, fez com que evitasse companhias. Insone,
costumava sair de carro, passeando na noite, por vezes parando em trailer de
lanches ou simplesmente rodando sem destino pela cidade.
Numa dessas madrugadas, viu Julia. Ficou vivamente
impressionado: elegantemente vestido, ali estava um ser macérrimo, quase
diáfano, profundamente pálido, pele leitosa, unhas longas, cabeleira
esvoaçante, chamando a atenção de quantos passavam por aquela figura. A partir
daquele momento, Julia não mais lhe saiu da cabeça e sempre que possível
passava pelo local apenas para visualizar aquela silhueta esquia que tanto o
fascinava... Travou um conflito íntimo quando descobriu, pelo noticiário, que
aquele lugar onde ficava sua musa era um ponto de travestis. Lutou contra o
desejo que sentia por aquele ser tão belo, mas inutilmente. Curioso, fez
pesquisas e descobriu a identidade real do seu objeto de desejo: José,
maquiador em um dos salões chiques da cidade, conhecido no mettier como Julia
Roberts. Em choque, disse a si mesmo que aquilo era um absurdo. Onde já viu?
Logo ele, ficar invocado com um baitola, um “traveco”?! Era inevitável! Havia
ocorrido uma mudança em seu íntimo: de tanto imaginar um romance com a Julia,
um dia abriu o porta - cédulas e viu a foto de uma mulher estranha. Não mais
aquela que amara durante dez anos de sua vida e que lhe magoara tanto com a
separação. Monica Mercedes Pizantino transformara-se num ponto obscuro de sua
história de vida, passara, era uma página virada. Há dias em que nem se
lembrava dela e agora saía para as madrugadas por motivos outros nos quais ela
não estava incluída. Só enxergava o travesti, perdidamente impressionado pela
figura impar.
Mas, algo atrapalhava a sua aproximação: a
ambiguidade daquela pessoa, de dia, de roupas masculinas e á noite, rodando a
bolsinha na esquina do prédio da Tv, uma perfeita e linda mulher. De maneira
masoquista, sofria com o fato e, ao mesmo tempo, deixava-se enredar nos
mistérios daquele que julgava hermafrodito ou, na pior das hipóteses, uma quase
mulher. Disposto a acabar com aquilo, tomou coragem e aproximou o automóvel,
buzinando para ela. Equilibrando-se em saltos Luiz XV, Julia aproximou-se,
sedutora:
- Oi, meu bem! E aí, gato?
- Tudo bem. Vamos dar um rolé?
Foram. Ele, vítima de um ataque de timidez
repentino, tremia e calava. Ele-ela, numa intimidade imediata, colocou a mão de
unhas postiças espalmada na perna do moço e demonstrou estar bem à vontade.
Depois, jogou os cabelos para trás, num movimento rotativo de cabeça, abriu a
bolsa e apanhou um maço de cigarros e um isqueiro metálico, tipo Zippo. Deu uma
baforada, lentamente, fechando a tampa do isqueiro. O barulho metálico assustou
o motorista.
- O que foi, meu bem? Por que está tão nervoso?
Como é seu nome, tesão?
- Ge... Ge... Geraldo – conseguiu dizer, engolindo
em seco – e como é o... O... O seu?
- Depende. Mas pode me chamar de Julia Roberts.
Você lembra daquele filme “Uma linda Mulher”? Quem sabe você não é Richard Gere
da minha vida?
Riu amarelo, lisonjeado e mais solto. Estendeu a
mão e alisou, com ternura, o cabelo ruivo do homossexual. Sentindo que tinha
boa receptividade, a figura dúbia dobrou a cabeça e recostou-se no ombro do
motorista. Este olhou de soslaio e considerou que ela era muito linda, muito
delicada, muito perfumada e muito muita coisa... Perguntou, temendo ser
precipitado, se ela tinha preferência por algum lugar. Dengosa, respondeu que
com ele ia para o fim do mundo. Ela passou a percorrer seu corpo em ardentes
carícias, ele quase não conseguindo dirigir, assediado por uma Julia cada vez
mais ousada, boca nervosa e frenética. Parou na portaria do motel mais próximo,
pediu a melhor suíte. Recebeu a chave e guiou até a garagem do apartamento.
Quando saltava, o celular tocou. Julia ficou ali, discreta. Entrou no quarto,
cheia de doces olhares e promessas, permitindo que atendesse a ligação. Ele
abriu o flap do aparelho e atendeu:
- Alô? Pois não...
- Geraldo, preciso falar com você...- gelou quando
reconheceu a voz embargada da ex-companheira que, sem lhe permitir nenhuma
resposta, foi dizendo atropelando as palavras:
- Olha, meu amor, me perdoa. Tentei lutar contra o
meu sentimento de culpa, eu não devia ter dado uma burrada daquelas, trocar
você pelo ordinário do Donato. Nossa separação não pode ser definitiva. Eu amo
você... Eu amo você... Por favor, por favor, me perdoa... Se você não me quiser
mais, vou fazer uma besteira! Venha me ver, querido! Já tomei meia garrafa de
uísque para ter coragem de lhe pedir perdão! Venha, Geraldo, venha... Meu corpo
precisa do seu, meu gostoso... – e desligou, de repente, atropelada pelos
próprios soluços, deixando-o estupefato. Geraldo entrou no apartamento sentindo
o programa quase perdido. Diabo! A Monica tinha que dar as caras logo agora
quando ele começava um novo relacionamento? Do banheiro vinha uma voz em
falsete, alternando-se com alguns graves. Sentou-se à beira da cama, abriu o
frigobar, pegou uma miniatura de uísque, derramou o conteúdo num copo com gelo
e completou a mistura com clube soda. Ligou a televisão, surgindo na tela uma
cena de sexo. Olhou com desdém e desligou. Ficou em silêncio, a mente
trabalhando febrilmente, ouvindo o jato de água do chuveiro e aquela voz em
falsete cantando uma música desconhecida para ele. Encostado na cabeceira da
cama redonda, sorvia a bebida que preparara e Monica não lhe saia da cabeça,
trazendo uma confusão terrível: Ela estava pensando o quê? Então terminava dez
anos de romance sem mais nem menos, pondo-lhe um belo par de chifres, e agora
achava que ele ia cair de joelhos? Que nada! Podia ficar iludida! Ele já tinha
um novo caso, acabara de fazer uma conquista, começava a se envolver com uma
figura nota dez! Mas... Diabo! Dez anos não são dez dias e Monica lhe pareceu
tão desamparada... Ela bem que merecia uma lição, mas aquele apelo fora muito
forte, espicaçara sua masculinidade: “Venha, Geraldo, venha... Meu corpo
precisa do seu, meu gostoso...” Coitada! Tão desamparada e chorando tanto! Deus
do Céu, e se ela tentasse o suicídio caso ele não atendesse ao apelo? Mulher
desesperada faz cada besteira... Que droga! – pensou. - Ter que ir ao enterro de Monica, o povo
pondo a culpa nele, o remorso roendo suas entranhas. Ficaria muito
transtornado, a ponto de nem poder se olhar mais no espelho sem ali ver um
pústula. E a certeza de que se tornara um assassino? Ah, precisava tomar uma
decisão e que fosse definitiva, sem arrependimentos posteriores.
Tão absorto e desorientado estava que nem percebeu
a água do chuveiro ser interrompida. Tomou um susto quando a porta do banheiro
foi aberta e no umbral surgiu algo jamais imaginado por ele: Deixando
escorregar a toalha de banho, sem a maquiagem que a tornava tão linda, ali
estava um ridículo arremedo de Julia, a Roberts...
Nua, afetada, como todos os atributos físicos de um
José, a caricata personagem postou-se de braços abertos e suspensos, as
munhecas quebradas, joelho direito para frente, inclinou a cabeça, revirou os
olhos e bradou: “-A... rra... sei, meu gato! Sou uma quase perfeita mulher!”
Surpreso, Geraldo vendo as protuberâncias
masculinas do parceiro, arregalou os olhos e levantou-se da cama, de chofre,
desviando-se daqueles braços que queriam abraçá-lo. Sem saber o que fazer.
Entrou correndo no banheiro, colocou o copo na pia, trancando a porta por
dentro. Levantou a tampa do vaso, ajoelhou-se e, para não sujar o chão, enfiou
a cabeça na cloaca, vomitando... Depois, abriu a torneira, tossindo e cuspindo.
Colocou água na boca, fez bocejo para limpá-la, ao tempo em que lavava a face.
Olhou no espelho e viu, com tristeza, uma cara amassada, confusa. Tentou
acalmar-se, bebeu um gole grande do uísque. Sentou no vaso sanitário, levou as
duas mãos à testa, a mente a mil, o coração disparado, atarantado.
Alguns instantes depois, mais calmo, com as emoções
sob controle, respirou fundo. Convicto da decisão que tomara, saiu do banheiro.
Julia estava deitada na cama redonda, olhando para
o teto espelhado enquanto, lasciva, acariciava o próprio corpo. Geraldo apagou
a luz e vencido, libertando-se do turbilhão contraditório de sentimentos
contraditórios, arrancou apressada e nervosamente a roupa.
Suspirando, caiu nos braços de Julia Roberts, seu novo e definitivo amor...
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