Símbolos do Santanópolis

FOTO OFICIAL DO ENCONTRO

FOTO OFICIAL DO ENCONTRO

sábado, 5 de fevereiro de 2022

JULIA ROBERTS

EDUARDO KRUSCHEWKY

Fazer o quê? Era quase impossível lutar contra a sensação de derrota, de desamparo. De concreto, daquela mulher tão amada restara a fotografia, teimosamente permanente em seu porta - cédulas e tantas vezes beijada nos momentos de solidão, embora ela houvesse sido tão real, tão presente em sua vida... Já haviam sido decorridos seis longos meses,   debatendo-se contra as lembranças, precisando de isolamento, de se tornar ilha. Ao vê-la de novo amor concluiu que o melhor remédio para dor de cotovelo era cair nos braços de uma nova mulher. Precisava fazer isto, o amor próprio ferido, não podia continuar só. Decidiu procurar alguém que lhe completasse, sem sucesso. Não tinha coragem e nem era mais nenhum garoto para sair por aí fazendo suspirar corações femininos! Assim, ficou retraído, quase não comparecia a algum evento ou festa. Sua rotina era de casa para o trabalho e do trabalho para casa. Via tudo no horário nobre da TV, desligava o aparelho e tentava dormir. Virava de um lado para o outro na cama, pensando em Monica, sem conseguir dormir, a ausência da amada a lhe torturar. A frustração, o sentimento de perda, fez com que evitasse companhias. Insone, costumava sair de carro, passeando na noite, por vezes parando em trailer de lanches ou simplesmente rodando sem destino pela cidade.

Numa dessas madrugadas, viu Julia. Ficou vivamente impressionado: elegantemente vestido, ali estava um ser macérrimo, quase diáfano, profundamente pálido, pele leitosa, unhas longas, cabeleira esvoaçante, chamando a atenção de quantos passavam por aquela figura. A partir daquele momento, Julia não mais lhe saiu da cabeça e sempre que possível passava pelo local apenas para visualizar aquela silhueta esquia que tanto o fascinava... Travou um conflito íntimo quando descobriu, pelo noticiário, que aquele lugar onde ficava sua musa era um ponto de travestis. Lutou contra o desejo que sentia por aquele ser tão belo, mas inutilmente. Curioso, fez pesquisas e descobriu a identidade real do seu objeto de desejo: José, maquiador em um dos salões chiques da cidade, conhecido no mettier como Julia Roberts. Em choque, disse a si mesmo que aquilo era um absurdo. Onde já viu? Logo ele, ficar invocado com um baitola, um “traveco”?! Era inevitável! Havia ocorrido uma mudança em seu íntimo: de tanto imaginar um romance com a Julia, um dia abriu o porta - cédulas e viu a foto de uma mulher estranha. Não mais aquela que amara durante dez anos de sua vida e que lhe magoara tanto com a separação. Monica Mercedes Pizantino transformara-se num ponto obscuro de sua história de vida, passara, era uma página virada. Há dias em que nem se lembrava dela e agora saía para as madrugadas por motivos outros nos quais ela não estava incluída. Só enxergava o travesti, perdidamente impressionado pela figura impar.

Mas, algo atrapalhava a sua aproximação: a ambiguidade daquela pessoa, de dia, de roupas masculinas e á noite, rodando a bolsinha na esquina do prédio da Tv, uma perfeita e linda mulher. De maneira masoquista, sofria com o fato e, ao mesmo tempo, deixava-se enredar nos mistérios daquele que julgava hermafrodito ou, na pior das hipóteses, uma quase mulher. Disposto a acabar com aquilo, tomou coragem e aproximou o automóvel, buzinando para ela. Equilibrando-se em saltos Luiz XV, Julia aproximou-se, sedutora:

- Oi, meu bem! E aí, gato?

- Tudo bem. Vamos dar um rolé?

Foram. Ele, vítima de um ataque de timidez repentino, tremia e calava. Ele-ela, numa intimidade imediata, colocou a mão de unhas postiças espalmada na perna do moço e demonstrou estar bem à vontade. Depois, jogou os cabelos para trás, num movimento rotativo de cabeça, abriu a bolsa e apanhou um maço de cigarros e um isqueiro metálico, tipo Zippo. Deu uma baforada, lentamente, fechando a tampa do isqueiro. O barulho metálico assustou o motorista.

- O que foi, meu bem? Por que está tão nervoso? Como é seu nome, tesão?

- Ge... Ge... Geraldo – conseguiu dizer, engolindo em seco – e como é o... O... O seu?

- Depende. Mas pode me chamar de Julia Roberts. Você lembra daquele filme “Uma linda Mulher”? Quem sabe você não é Richard Gere da minha vida?

Riu amarelo, lisonjeado e mais solto. Estendeu a mão e alisou, com ternura, o cabelo ruivo do homossexual. Sentindo que tinha boa receptividade, a figura dúbia dobrou a cabeça e recostou-se no ombro do motorista. Este olhou de soslaio e considerou que ela era muito linda, muito delicada, muito perfumada e muito muita coisa... Perguntou, temendo ser precipitado, se ela tinha preferência por algum lugar. Dengosa, respondeu que com ele ia para o fim do mundo. Ela passou a percorrer seu corpo em ardentes carícias, ele quase não conseguindo dirigir, assediado por uma Julia cada vez mais ousada, boca nervosa e frenética. Parou na portaria do motel mais próximo, pediu a melhor suíte. Recebeu a chave e guiou até a garagem do apartamento. Quando saltava, o celular tocou. Julia ficou ali, discreta. Entrou no quarto, cheia de doces olhares e promessas, permitindo que atendesse a ligação. Ele abriu o flap do aparelho e atendeu:

- Alô? Pois não...

- Geraldo, preciso falar com você...- gelou quando reconheceu a voz embargada da ex-companheira que, sem lhe permitir nenhuma resposta, foi dizendo atropelando as palavras:

- Olha, meu amor, me perdoa. Tentei lutar contra o meu sentimento de culpa, eu não devia ter dado uma burrada daquelas, trocar você pelo ordinário do Donato. Nossa separação não pode ser definitiva. Eu amo você... Eu amo você... Por favor, por favor, me perdoa... Se você não me quiser mais, vou fazer uma besteira! Venha me ver, querido! Já tomei meia garrafa de uísque para ter coragem de lhe pedir perdão! Venha, Geraldo, venha... Meu corpo precisa do seu, meu gostoso... – e desligou, de repente, atropelada pelos próprios soluços, deixando-o estupefato. Geraldo entrou no apartamento sentindo o programa quase perdido. Diabo! A Monica tinha que dar as caras logo agora quando ele começava um novo relacionamento? Do banheiro vinha uma voz em falsete, alternando-se com alguns graves. Sentou-se à beira da cama, abriu o frigobar, pegou uma miniatura de uísque, derramou o conteúdo num copo com gelo e completou a mistura com clube soda. Ligou a televisão, surgindo na tela uma cena de sexo. Olhou com desdém e desligou. Ficou em silêncio, a mente trabalhando febrilmente, ouvindo o jato de água do chuveiro e aquela voz em falsete cantando uma música desconhecida para ele. Encostado na cabeceira da cama redonda, sorvia a bebida que preparara e Monica não lhe saia da cabeça, trazendo uma confusão terrível: Ela estava pensando o quê? Então terminava dez anos de romance sem mais nem menos, pondo-lhe um belo par de chifres, e agora achava que ele ia cair de joelhos? Que nada! Podia ficar iludida! Ele já tinha um novo caso, acabara de fazer uma conquista, começava a se envolver com uma figura nota dez! Mas... Diabo! Dez anos não são dez dias e Monica lhe pareceu tão desamparada... Ela bem que merecia uma lição, mas aquele apelo fora muito forte, espicaçara sua masculinidade: “Venha, Geraldo, venha... Meu corpo precisa do seu, meu gostoso...” Coitada! Tão desamparada e chorando tanto! Deus do Céu, e se ela tentasse o suicídio caso ele não atendesse ao apelo? Mulher desesperada faz cada besteira... Que droga! – pensou.  - Ter que ir ao enterro de Monica, o povo pondo a culpa nele, o remorso roendo suas entranhas. Ficaria muito transtornado, a ponto de nem poder se olhar mais no espelho sem ali ver um pústula. E a certeza de que se tornara um assassino? Ah, precisava tomar uma decisão e que fosse definitiva, sem arrependimentos posteriores.

Tão absorto e desorientado estava que nem percebeu a água do chuveiro ser interrompida. Tomou um susto quando a porta do banheiro foi aberta e no umbral surgiu algo jamais imaginado por ele: Deixando escorregar a toalha de banho, sem a maquiagem que a tornava tão linda, ali estava um ridículo arremedo de Julia, a Roberts...

Nua, afetada, como todos os atributos físicos de um José, a caricata personagem postou-se de braços abertos e suspensos, as munhecas quebradas, joelho direito para frente, inclinou a cabeça, revirou os olhos e bradou: “-A... rra... sei, meu gato! Sou uma quase perfeita mulher!”

Surpreso, Geraldo vendo as protuberâncias masculinas do parceiro, arregalou os olhos e levantou-se da cama, de chofre, desviando-se daqueles braços que queriam abraçá-lo. Sem saber o que fazer. Entrou correndo no banheiro, colocou o copo na pia, trancando a porta por dentro. Levantou a tampa do vaso, ajoelhou-se e, para não sujar o chão, enfiou a cabeça na cloaca, vomitando... Depois, abriu a torneira, tossindo e cuspindo. Colocou água na boca, fez bocejo para limpá-la, ao tempo em que lavava a face. Olhou no espelho e viu, com tristeza, uma cara amassada, confusa. Tentou acalmar-se, bebeu um gole grande do uísque. Sentou no vaso sanitário, levou as duas mãos à testa, a mente a mil, o coração disparado, atarantado.

Alguns instantes depois, mais calmo, com as emoções sob controle, respirou fundo. Convicto da decisão que tomara, saiu do banheiro.

Julia estava deitada na cama redonda, olhando para o teto espelhado enquanto, lasciva, acariciava o próprio corpo. Geraldo apagou a luz e vencido, libertando-se do turbilhão contraditório de sentimentos contraditórios, arrancou apressada e nervosamente a roupa.

Suspirando, caiu nos braços de Julia Roberts, seu novo e definitivo amor...    


 

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