Como
definiu Caetano Veloso: "O Rio de Janeiro é o Brasil, São Paulo é o mundo
e a Bahia é a Bahia." Jabor pinta a cidade com cores que até podem ser
ouvidas; a linguagem poética que vem das suas palavras nessa crônica, também
tem som e cores; e podemos lê-la como grandes fotos panorâmicas expostas em uma
galeria.
A Bahia foi o lugar ideal para a África chegar.
Não consigo ir embora da Bahia. Acabaram minhas férias e
continuo aqui. Mesmo que eu viaje depois do Carnaval, levarei a Bahia comigo.
Não se trata de louvá-la; quero entendê-la, não com a cabeça,
mas com o corpo, com as mãos, com o nariz, entender como um cego apalpa um
objeto, entender por que esse lugar é tão fortemente estruturado em sua
aparente dispersão.
Aí, descubro que, ao contrário, a Bahia me ajuda a
"me" entender. Não sou eu quem olha; a Bahia é que me olha de fora,
inteira, sólida, secular, a paisagem me olha e fica patente minha alienação de
carioca-paulista, fica evidente meu isolamento diante da vida, eu, essa
estranha coisa aflita que está sempre entre um instante e outro, sem nunca ser
calmo, inconsciente e feliz como um animal.
Na Bahia, vejo-me neurótico, obsessivo, sempre em dúvida,
ansioso. Gostaria de estar na praia de Buraquinho, quieto, dentro do mar, como
um peixe, como parte da geografia e não fora dela. Ninguém aqui se observa
vivendo.
Salvador não é uma "cidade partida" como é o Rio,
nem a cidade que expele seus escravos, como São Paulo, que um dia será
castigada, estrangulada por sua periferia. Aqui, de alguma forma misteriosa, os
pobres e negros, mesmo sem posses, são donos da cidade. A cultura africana que
chegou nos navios negreiros, entre fezes e sangue, parece ter encontrado a
região ideal nesse promontório boiando sobre o mar, batido de um vento geral,
para fundar uma cidade erótica e religiosa, plantada nos cinco sentidos, fluindo
do corpo e da terra. Os casarios subiram os montes, desceram em vales por
necessidade dos colonos e escravos do passado, o espaço urbano foi desenhado
pelo desejo dos homens. A Bahia foi o lugar perfeito para a África chegar.
Tudo se sincretiza, natureza e cultura. Espírito e matéria se
unem como um bloco só, amores e vinganças fluem no sangue dos galos e dos
bodes, esperanças queimam nas velas de sete dias, todas as coisas se amontoam
num grande procedimento barroco de não deixar vazio algum, nada que sobre, que
fique fora, nada que isole matéria e gente.
Os deuses não estão no Olimpo; são terrenos e florestais,
estão na rua, no dendê, dentro da planta. Consciência e realidade não se
dividem, o povo e o mundo são a mesma coisa, e isso aplaca as neuroses, as
alienações das megacidades, onde o homem é um pobre diabo perdido no meio dos
viadutos.
Como nas fotos do Mario Cravo Neto, tudo se une em um só
bloco: o alvo pato e a mão negra, a mulher nua e a pedra, o nadador, o sol e a
água, as frutas, os cestos e as bocas, as plantas e os pés, os búzios e os
segredos, os santos e os orixás, as mãos e o tambor, a fome e a carne, o sexo e
a comida.
Tenho uma espécie de inveja e saudade dessa cultura
integrada, dessa sociedade secreta que vejo nos olhares das pessoas falando
entre si, uma língua muda que não entendo, tenho inveja da palpabilidade de
suas vidas materiais, tenho inveja da grande tribo popular que adivinho nos
becos e ladeiras, das pessoas que riem e dançam nas beiras de calçada, que se
amam na beira-mar, tenho inveja dessa cultura calma que vive no
"presente", coisa que não temos mais nas "cidades
partidas", sem passado e com um futuro que não cessa de não-chegar. Nesta
época maníaca e americana, que se esvai sem repouso, aqui há o ritmo do prazer,
a "sábia preguiça solar" de que falou Oswald e que Caymmi professa.
A civilização que os escravos trouxeram criou essa
"grande suavidade", esse mistério sem transcendência, esse cotidiano
sem ansiedade, essa alegria sem meta, essa felicidade sem pressa.
Aqui a cultura vem antes da lei. Aqui o soldado na guarita é
um negro com passado e orixás, dentro da roupa de soldado.
O bombeiro, o vendedor, o pescador, o vagabundo se comunicam
e existem antes das roupagens da sociedade. Até se travestem, se fantasiam de
si mesmos nos horrendos "resorts" caretas da burguesia, mas não
perdem a alma para o diabo, defendidos pela vigilância de seus exus.
A sinistra modernidade tenta adquirir a Bahia, possuí-la,
apropriar-se das praias, das ilhas, dos panoramas.
Mas mesmo o progresso urbano e tecnológico aqui fica domado
de certo modo pela cultura, que resiste a esses embates. Os balneários
turísticos aqui me parecem meio patéticos, meio Miami, na vivência luxuosa dos
acarajés, camarões e uísques trazidos por serviçais iaôs e mordomos de cabeça
feita.
Aqui não se vêem os rostos torturados dos miseráveis do Rio e
São Paulo; a pobreza tem uma religião terrena costurando tudo. As festas do ano
inteiro não são diversionistas, orgiásticas, para "divertir" - são
para integrar.
As festas têm uma religiosidade pagã, sem sacrifícios, sem
asceses torturadas de olhos virados para o céu. Nada sobrou do barroco europeu
sofrido; só prosperou o barroco gordo, pansexual, com as frutas, os anjinhos
nus, os refolhos e ouropéis invadindo o convulsivo barroco da contra-reforma,
com as curvas carnavalescas nas igrejas cheias de cariátides peitudas, sexies,
gostosas, como as mulatas do Pelourinho.
Não é uma sociedade, mas um grande ritual em funcionamento. O
Brasil aflito, injusto, imundo, inóspito devia aspirar a ser Bahia. Aqui dá
para esquecer o jogo sujo do Congresso em Brasília, revelando a face oculta dos
bandidos com imunidade, emporcalhando a democracia, aqui você não morre afogado
na enchente da marginal Tietê, nem o Ronaldinho é assaltado com revólver na
cabeça. Não conheço lugar mais naturalmente democrático. E, por isso, não
consigo ir embora. Vou comprar uma camiseta "No Stress" e ficar
bebendo "frappé" de coco para sempre.
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