Augusto M. Spinola santanopolitano |
É fato que já sabemos muitas coisas a respeito da
história de Feira de Santana.
Muitas coisas?
Qualquer iniciante no assunto logo conquista preciosas
informações sobre a fazenda Sant’Anna dos Olhos d’Água que, segundo a lenda,
dará origem ao povoado de Santana da Feira.
Associa-se Feira de Santana a um passado remoto de
certa atividade agrícola e de criação de gado, seguido de um momento de feira
livre, comércio de gado e passagem para vida urbana. Não sabemos dizer ao certo
o que vai prevalecer na genética da cidade do final do século XIX até os dias
atuais. Se, por uma raiz mais urbana, será a crescente atividade comercial -
aumento do número de lojas de tecidos, de bares, de farmácias, de boutiques, de
joalherias, de lojas de instrumentos musicais, de lojas de artigos importados -
ou quase isso - ou a referência rural, aquela da feira livre, de negócios de
gado, de compra e venda de peles, de mingaus, de beijus, de vendedor ambulante
de frutas e verduras, de milho cozido, de literatura de cordel, de aboios, de
reverências ao vaqueiro, ao tropeiro, ao cheiro de batata doce, de tripa, de
fatada, de mocofato, de pirão de leite com carne do sol, de ovos fritos, de
cuscuz e por aí vai...
Deveríamos começar a contar a história de Feira de Santana pela Expofeira.
Lá do parque de exposição na BR-324. E foi por aí que começamos nossa viagem de
estudo, nós e um grupo de estudantes do 6o ano do Colégio Génesis.
Ali (na Expofeira) se intensifica, ainda que uma vez ao ano, a negociação de
boa parte daquilo que fora a feira do gado. A Expofeira é um momento novo do
campo do gado. Aquele de um só dia para depois sumir, desaparecer. Uma
cinderela do gado. Arruma-se, fica pronta e depois de uma semana, desaparece,
deixando apenas um rastro dos negócios que realizou... Um cheiro do gado que
esteve ali, um zumbido dos shows realizados...
Um murmúrio
de todo o povo que andou pela exposição agropecuária: povo que vendeu, que
comprou, que montou, que se divertiu, que trabalhou... Ali seria um ponto no
presente para uma partida em direção ao passado.
Como tudo aquilo teria começado?
Saímos da Expofeira e paramos rapidamente no viaduto
do 35° BI do Exército Brasileiro. Está escrito: Portal do Sertão. Porta do
sertão. Entrada para o sertão. Significa: o clima vai mudar, a vegetação vai
mudar a brisa, a chuva ou chuvisco que nos acompanhavam vindos do litoral, da
direção da capital, da baía famosa que deu nome ao Estado, vai nos deixar a sós
com um calor quase insuportável, com a fervura do sol da manhã e o inferno do
sol da tarde. Cada passo dado na direção do norte significa ainda mais termos o
sol como companheiro. Ter escassas nuvens passando por nós como deboche, como
pirraça. Dificilmente se jogarão neste solo. Rumamos da entrada do sertão até
chegarmos ao Feiraguai - hoje um centro comercial que engloba lojas de discos,
de eletrodomésticos, de roupas, de perucas, de uma quantidade absurda de
produto e mercadorias - e a Feira do Rato (espaço de compra e venda de veículos
de todas as espécies, ainda daquela forma direta, comprador-vendedor, ou no máximo
com um agilizador do negócio que ganha um percentual de cada lado e vai vivendo
a vida). Até alguns anos atrás, ali fora a Estação Ferroviária de Feira de
Santana - da Cia. Chemins de Fer Federaux du L’Est fírésilien - inaugurada no
dia dois de dezembro de 1876. O trecho entre Cachoeira e Feira de Santana foi o
primeiro trecho aberto pela E. F Central da Bahia, no ano de 1876. Em 1942, com
a remodelação geral das linhas da região, o trecho entre Conceição de Feira e
Feira de Santana passou a ser um ramal, que foi extinto oficialmente em
16/05/1975, mas que não operava, pelo menos com passageiros, desde 1964. Da
calçada da Igreja dava para ver o trem se aproximar, escutar seu apito,
abraçar-se em despedida, ou esfregar as mãos em sinal de agonia, de expectativa
por quem vai chegar. Com certeza, passageiros ilustres e importantes
trabalhadores pegaram o trem e voltaram pros braços de familiares. Ou
fízeram uma viagem de volta até Cachoeira. A estação era um espaço próximo à
Igreja da Matriz. Ali bem ao lado da Praça Padre Ovídio e da Santa Casa de
Misericórdia.
Quando Feira de Santana vai
serpenteando essa região, ela cresce na direção da Rua Conselheiro Franco -
ladeada pela Rua Marechal Deodoro da Fonseca. Este espaço torna-se nosso
terceiro ponto de estudo. As duas deixam rapidamente de serem ruas residenciais
para se transformarem em importantes centros comerciais da cidade. Lojas e
galerias vão surgindo, entrecortadas por cafés e bares. Comércio de
eletrodoméstico, de fazenda (aqui no sentido de tecido), de ervas, de panelas e
outras quinquilharias. Era forte, até porque caminhava em direção à bem
frequentada feira livre da Avenida Getúlio Vargas. Aqui fazemos duas
importantes observações: a primeira sobre a feira livre. Esta feira é aquela
muitas vezes apontada como responsável pelo desenvolvimento desta cidade.
Crescia da altura do cruzamento da Rua J.J. Seabra com a Getúlio, até chegar à
altura da Rua Conselheiro Franco, não sem antes cuspir pedaços de feira por
toda Avenida Senhor dos Passos, Rua Marechal Deodoro, Sales Barbosa, tendo como
ponto nervoso o mercado de carnes e farinha e a Praça da Bandeira. Os vaqueiros
e agricultores chegavam em cavalos e/ou carroças e deixavam seus meios de
transportes amarrados nessa praça. Pessoas que caminhavam freneticamente em
várias direções, na certa procurando fumo, cachaça, gado, querosene, sal, ou
fregueses para suas mercadorias. Essa feira existiu até o ano de 1977.
Nessa ocasião, chega o momento da feira livre ser transferida
para o Centro de Abastecimento (quarta parada de estudos), perto do Tanque da
Nação, atrás da Santa Casa, numa tentativa de tirá-la do centro da cidade. Mas
o Beco do Mocó e a Rua Marechal, e toda a calçada dessa rua, incumbiram-se de
dizer que a feira não sairia assim. Se fora desmontada, tirada à força da
Avenida Getúlio Vargas e Praça da Bandeira, das imediações da esquina com a
Avenida Senhor dos Passos, ela se montaria sobre pedaços de panos organizados
nos passeios das ruas, sobre cavaletes estruturados nos becos da Rua Marechal,
no meio do Beco do Mocó, no Beco da Energia, até chegar de volta à rua (como
muitas vezes nos referimos ao centro das cidade), fazendo com que a urbis trave
ali, principalmente nas segundas-feiras, antigo dia da exposição da feira
livre. O povo não cedeu ao fato de ser empurrado para o Centro de Abastecimento
e empurrou a feira livre de volta para o centro da cidade, até se juntar ao
Mercado de Artes, hoje centro de comércio artesanal, antigo mercado de carnes e
farinhas. Só que agora a feira veio pelo outro lado, vinda da Praça do
Lambe-Lambe na Avenida Senhor dos Passos. Nesse lugar alcançou metade da rua,
espremendo carros e gente que disputam os poucos espaços entre barracas de
goiabas, de mamão, de laranja e tangerina, barracas de farinha de goma, e de
beijus, de quiabo, maxixe e acerola. Muito para se pesquisar nesta área. Falar
da Praça do Lambe-Lambe (ou seja, Praça Bernardino Bahia) e dos seus condenados
trabalhadores. Dos fotógrafos que desafiam o tempo e resistem, fazendo retratos
em três por quatro, como se fossem a única solução para desinformados
frequentadores do lugar. Tecem fotografias como se estivessem no início do
século XX, artesanalmente, um ou outro agora com a câmera digital, responsável
direta pelo fim de uma profissão da cidade: do fotógrafo do lambe-lambe.
Próxima parada para estudos, o
Centro de Abastecimento. O espaço construído para abrigar a antiga feira livre.
Mais que social obra de viés essencialmente político, responsável pela
destruição do mais importante ponto de atração turística da cidade, a feira
livre. A maior feira livre montada no Brasil. Ainda hoje, o Centro de
Abastecimento é um palco mal estruturado, onde os atores resistem em
frequentar, onde vender e comprar encontra resistência na falta de higiene, na
desorganização total do espaço, na falta de preparo para os dias de chuva, para
a carga e descarga de mercadorias que ainda chegam de muitos lugares. Afinal
Feira de Santana é região metropolitana, e graças a estas mercadorias que
insistem em serem comercializadas em lugar tão inadequado, várias cidades
desenvolvem suas próprias feiras, montam e desmontam vidas, expectativas,
sonhos, vivências de um povo... Partimos para outro ponto de grande história: o
campo do gado.
O Campo do Gado entra nessa
sessão de estudos com várias particularidades. Guarda a característica de estar
sempre afastado do núcleo urbano e de ter um comércio nos moldes do que já foi
um dia, onde vaqueiros-vendedores montam seus burros e cavalos para colocá-los
à venda onde vaqueiros-compradores observam encostados na cerca, procurando
notar um defeito na pata, no galope, nas vistas... A cena é modificada pela
chegada de um barulhento caminhão de bois, não mais pelo aboio de outro
vaqueiro. Chega carregado de gado pé duro, dependendo de onde vem, gordo e
pronto para venda. Ao redor deste espaço de comércio, alguns boxes de artesãos
ferreiros, de produtores de utilidades de couro - selas, tacas, arreios,
jalecos... Um restaurante que serve carne cozida (ensopado) e galinha ao molho
pardo, acompanhada de feijão, farinha e pimenta.
Estudar Feira de Santana...
Voltar do novo Campo do Gado para o antigo. Encontrar neste espaço o Shopping
Boullevard, o Ville Gourmet, entrar e se deparar com prédios antigos escondidos
pelos novos restaurantes, novas pizzarias, e por campos de futebol. Olhar e se
deparar com Glauber Rocha encostado no curral, filmando Deus e o Diabo na Terra
do Sol. A cena do vaqueiro roubado e maltratado que se volta contra o
fazendeiro.
Caminhar mais um pouco e chegar até a feirinha. A Estação
Nova. Por que nova? Por que substituiu a velha, aquela das proximidades da
Matriz. E que deu nome à feira livre atual na Avenida João Durval Carneiro. Mas
que também não mais existe enquanto estação, nem na lembrança do prédio que foi
demolido, sabe-se lá por quê, e que se encontra em construção eterna, sem
ninguém saber direito o que está sendo construído de novo...
Edição Especial do Instituto Histórico e Geográfico de
Feira de Santana - 2015
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