Eliane Brum |
Há meses passados houve uma querela publicada no jornal "NoiteDia" sobre o título de DOUTOR. Lendo este texto na revista "Época", achei interessante reproduzir com a intenção de colocar uma opinião a mais no problema.
Por que o uso da palavra “doutor” antes do nome de advogados e médicos ainda persiste entre nós? E o que ela revela do Brasil?
Sei
muito bem que a língua, como coisa viva que é, só muda quando mudam as pessoas,
as relações entre elas e a forma como lidam com o mundo. Poucas expressões
humanas são tão avessas a imposições por decreto como a língua. Tão indomável
que até mesmo nós, mais vezes do que gostaríamos, acabamos deixando escapar
palavras que faríamos de tudo para recolher no segundo seguinte. E talvez mais
vezes ainda pretendêssemos usar determinado sujeito, verbo, substantivo ou
adjetivo e usamos outro bem diferente, que revela muito mais de nossas
intenções e sentimentos do que desejaríamos. Afinal, a psicanálise foi
construída com os tijolos de nossos atos falhos. Exerço, porém, um pequeno ato
quixotesco no meu uso pessoal da língua: esforço-me para jamais usar a palavra
“doutor” antes do nome de um médico ou de um advogado.
Travo minha pequena batalha com a consciência de que a língua
nada tem de inocente. Se usamos as palavras para embates profundos no campo das
ideias, é também na própria escolha delas, no corpo das palavras em si, que se
expressam relações de poder, de abuso e de submissão. Cada vocábulo de um
idioma carrega uma teia de sentidos que vai se alterando ao longo da História,
alterando-se no próprio fazer-se do homem na História. E, no meu modo de ver o
mundo, “doutor” é uma praga persistente que fala muito sobre o Brasil. Como
toda palavra, algumas mais do que outras, “doutor” desvela muito do que somos –
e é preciso estranhá-lo para conseguirmos escutar o que diz.
Assim, minha recusa ao “doutor” é um ato político. Um ato de
resistência cotidiana, exercido de forma solitária na esperança de que um dia
os bons dicionários digam algo assim, ao final das várias acepções do verbete
“doutor”: “arcaísmo: no passado, era usado pelos mais pobres para tratar os
mais ricos e também para marcar a superioridade de médicos e advogados, mas,
com a queda da desigualdade socioeconômica e a ampliação dos direitos do
cidadão, essa acepção caiu em desuso”.
Em minhas aspirações, o sentido da palavra perderia sua força
não por proibição, o que seria nada além de um ato tão inútil como arbitrário,
na qual às vezes resvalam alguns legisladores, mas porque o Brasil mudou. A
língua, obviamente, só muda quando muda a complexa realidade que ela expressa.
Só muda quando mudamos nós.
Historicamente, o “doutor” se entranhou na sociedade brasileira
como uma forma de tratar os superiores na hierarquia socioeconômica – e também
como expressão de racismo. Ou como a forma de os mais pobres tratarem os mais
ricos, de os que não puderam estudar tratarem os que puderam, dos que nunca
tiveram privilégios tratarem aqueles que sempre os tiveram. O “doutor” não se
estabeleceu na língua portuguesa como uma palavra inocente, mas como um fosso,
ao expressar no idioma uma diferença vivida na concretude do cotidiano que
deveria ter nos envergonhado desde sempre.
Lembro-me de, em 1999, entrevistar Adail José da Silva, um
carregador de malas do Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, para a coluna
semanal de reportagem que eu mantinha aos sábados no jornal Zero Hora,
intitulada “A Vida Que Ninguém Vê”. Um trecho de nosso diálogo foi este:
- E
como os fregueses o chamam?
- Os doutor me chamam assim, ó: “Ô, negão!” Eu acho até que é carinhoso.
- Os doutor me chamam assim, ó: “Ô, negão!” Eu acho até que é carinhoso.
- O senhor chama eles de doutor?
- Pra mim todo mundo é doutor. Pisou no aeroporto é doutor. É ó, doutor, como vai, doutor, é pra já, doutor....
- Pra mim todo mundo é doutor. Pisou no aeroporto é doutor. É ó, doutor, como vai, doutor, é pra já, doutor....
- É esse o segredo do serviço?
- Tem que ter humildade. Não adianta ser arrogante. Porque, se eu fosse um cara importante, não ia tá carregando a mala dos outros, né? Sou pé de chinelo. Então, tenho que me botar no meu lugar.
- Tem que ter humildade. Não adianta ser arrogante. Porque, se eu fosse um cara importante, não ia tá carregando a mala dos outros, né? Sou pé de chinelo. Então, tenho que me botar no meu lugar.
A forma como Adail via o mundo e o seu lugar no mundo – a partir
da forma como os outros viam tanto ele quanto seu lugar no mundo – contam-nos
séculos de História do Brasil. Penso, porém, que temos avançado nas últimas
décadas – e especialmente nessa última. O “doutor” usado pelo porteiro para
tratar o condômino, pela empregada doméstica para tratar o patrão, pelo
engraxate para tratar o cliente, pelo negro para tratar o branco não
desapareceu – mas pelo menos está arrefecendo.
Se alguém, especialmente nas grandes cidades, chamar hoje o
outro de “doutor”, é legítimo desconfiar de que o interlocutor está brincando
ou ironizando, porque parte das pessoas já tem noção da camada de ridículo que
a forma de tratamento adquiriu ao longo dos anos. Essa mudança, é importante
assinalar, reflete também a mudança de um país no qual o presidente mais
popular da história recente é chamado pelo nome/apelido. Essa contribuição –
mais sutil, mais subjetiva, mais simbólica – que se dá explicitamente pelo
nome, contida na eleição de Lula, ainda merece um olhar mais atento,
independentemente das críticas que se possa fazer ao ex-presidente e seu
legado.
Se o “doutor” genérico, usado para tratar os mais ricos, está
perdendo seu prazo de validade, o “doutor” que anuncia médicos e advogados
parece se manter tão vigoroso e atual quanto sempre. Por quê? Com tantas
mudanças na sociedade brasileira, refletidas também no cinema e na literatura,
não era de se esperar um declínio também deste doutor?
Ao pesquisar o uso do “doutor” para escrever esta coluna,
deparei-me com artigos de advogados defendendo que, pelo menos com relação à
sua própria categoria, o uso do “doutor” seguia legítimo e referendado na lei e
na tradição. O principal argumento apresentado para defender essa tese estaria
num alvará régio no qual D. Maria, de Portugal, mais conhecida como “a louca”, teria
outorgado o título de “doutor” aos advogados. Mais tarde, em 1827, o título de
“doutor” teria sido assegurado aos bacharéis de Direito por um decreto de Dom
Pedro I, ao criar os primeiros cursos de Ciências Jurídicas e Sociais no
Brasil. Como o decreto imperial jamais teria sido revogado, ser “doutor”
seria parte do “direito” dos advogados. E o título teria sido “naturalmente”
estendido para os médicos em décadas posteriores.
Há,
porém, controvérsias. Em consulta à própria fonte, o artigo 9 do decreto de D.
Pedro I diz o seguinte: “Os que frequentarem os cinco anos de qualquer dos
Cursos, com aprovação, conseguirão o grau de Bacharéis formados. Haverá também
o grau de Doutor, que será conferido àqueles que se habilitarem com os
requisitos que se especificarem nos Estatutos, que devem formar-se, e só os que
o obtiverem, poderão ser escolhidos para Lentes”. Tomei a liberdade de
atualizar a ortografia, mas o texto original pode ser conferido aqui.
“Lente” seria o equivalente hoje à livre-docente.
Mesmo que Dom Pedro I tivesse concedido a bacharéis de Direito o
título de “doutor”, o que me causa espanto é o mesmo que, para alguns membros
do Direito, garantiria a legitimidade do título: como é que um decreto do
Império sobreviveria não só à própria queda do próprio, mas também a tudo o que
veio depois?
O fato é que o título de “doutor”, com ou sem decreto imperial,
permanece em vigor na vida do país. Existe não por decreto, mas enraizado na
vida vivida, o que torna tudo mais sério. A resposta para a atualidade do
“doutor” pode estar na evidência de que, se a sociedade brasileira mudou
bastante, também mudou pouco. A resposta pode ser encontrada na enorme
desigualdade que persiste até hoje. E na forma como essas relações desiguais
moldam a vida cotidiana.
É no dia a dia das delegacias de polícia, dos corredores do
Fórum, dos pequenos julgamentos que o “doutor” se impõe com todo o seu poder
sobre o cidadão “comum”. Como repórter, assisti à humilhação e ao desamparo
tanto das vítimas quanto dos suspeitos mais pobres à mercê desses doutores, no
qual o título era uma expressão importante da desigualdade no acesso à lei. No início,
ficava estarrecida com o tratamento usado por delegados, advogados, promotores
e juízes, falando de si e entre si como “doutor fulano” e “doutor beltrano”.
Será que não percebem o quanto se tornam patéticos ao fazer isso?, pensava. Aos
poucos, percebi a minha ingenuidade. O “doutor”, nesses espaços, tinha uma
função fundamental: a de garantir o reconhecimento entre os pares e assegurar a
submissão daqueles que precisavam da Justiça e rapidamente compreendiam que a
Justiça ali era encarnada e, mais do que isso, era pessoal, no amplo sentido do
termo.
No caso dos médicos, a atualidade e a persistência do título de
“doutor” precisam ser compreendidas no contexto de uma sociedade patologizada,
na qual as pessoas se definem em grande parte por seu diagnóstico ou por suas
patologias. Hoje, são os médicos que dizem o que cada um de nós é: depressivo,
hiperativo, bipolar, obeso, anoréxico, bulímico, cardíaco, impotente, etc. Do
mesmo modo, numa época histórica em que juventude e potência se tornaram
valores – e é o corpo que expressa ambas – faz todo sentido que o poder médico
seja enorme. É o médico, como manipulador das drogas legais e das intervenções
cirúrgicas, que supostamente pode ampliar tanto potência quanto juventude. E,
de novo supostamente, deter o controle sobre a longevidade e a morte. A ponto
de alguns profissionais terem começado a defender que a velhice é uma “doença”
que poderá ser eliminada com o avanço tecnológico.
O “doutor” médico e o “doutor” advogado, juiz, promotor,
delegado têm cada um suas causas e particularidades na história das
mentalidades e dos costumes. Em comum, o doutor médico e o doutor advogado,
juiz, promotor, delegado têm algo significativo: a autoridade sobre os corpos.
Um pela lei, o outro pela medicina, eles normatizam a vida de todos os outros.
Não apenas como representantes de um poder que pertence à instituição e não a
eles, mas que a transcende para encarnar na própria pessoa que usa o título.
Se olharmos a partir das relações de mercado e de consumo, a
medicina e o direito são os únicos espaços em que o cliente, ao entrar pela
porta do escritório ou do consultório, em geral já está automaticamente numa
posição de submissão. Em ambos os casos, o cliente não tem razão, nem sabe o
que é melhor para ele. Seja como vítima de uma violação da lei ou como autor de
uma violação da lei, o cliente é sujeito passivo diante do advogado, promotor,
juiz, delegado. E, como “paciente” diante do médico, como abordei na coluna anterior, deixa de ser pessoa para
tornar-se objeto de intervenção.
Num país no qual o acesso à Justiça e o acesso à Saúde são
deficientes, como o Brasil, é previsível que tanto o título de “doutor”
permaneça atual e vigoroso quanto o que ele representa também como viés de
classe. Apesar dos avanços e da própria Constituição, tanto o acesso à Justiça
quanto o acesso à Saúde permanecem, na prática, como privilégios dos mais
ricos. As fragilidades do SUS, de um lado, e o número insuficiente de
defensores públicos de outro são expressões dessa desigualdade. Quando o
direito de acesso tanto a um quanto a outro não é assegurado, a situação de
desamparo se estabelece, assim como a subordinação do cidadão àquele que pode
garantir – ou retirar – tanto um quanto outro no cotidiano. Sem contar que a
cidadania ainda é um conceito mais teórico do que concreto na vida
brasileira.
Infelizmente, a maioria dos “doutores” médicos e dos “doutores”
advogados, juízes, promotores, delegados etc estimulam e até exigem o título no
dia a dia. E talvez o exemplo público mais contundente seja o do juiz de
Niterói (RJ) que, em 2004, entrou na Justiça para exigir que os empregados do
condomínio onde vivia o chamassem de “doutor”. Como consta nos autos, diante da
sua exigência, o zelador retrucava: “Fala sério....” Não conheço em
profundidade os fatos que motivaram as desavenças no condomínio – mas é muito
significativo que, como solução, o juiz tenha buscado a Justiça para exigir um
tratamento que começava a lhe faltar no território da vida cotidiana.
É importante reconhecer que há uma pequena parcela de médicos e
advogados, juízes, promotores, delegados etc que tem se esforçado para eliminar
essa distorção. Estes tratam de avisar logo que devem ser chamados pelo nome.
Ou por senhor ou senhora, caso o interlocutor prefira a formalidade – ou o
contexto a exija. Sabem que essa mudança tem grande força simbólica na luta por
um país mais igualitário e pela ampliação da cidadania e dos direitos. A estes,
meu respeito.
Resta ainda o “doutor” como título acadêmico, conquistado por
aqueles que fizeram doutorado nas mais diversas áreas. No Brasil, em geral isso
significa, entre o mestrado e o doutorado, cerca de seis anos de estudo além da
graduação. Para se doutorar, é preciso escrever uma tese e defendê-la diante de
uma banca. Neste caso, o título é – ou deveria ser – resultado de muito estudo
e da produção de conhecimento em sua área de atuação. É também requisito para uma
carreira acadêmica bem sucedida – e, em muitas universidades, uma exigência
para se candidatar ao cargo de professor.
Em geral, o título só é citado nas comunicações por escrito no
âmbito acadêmico e nos órgãos de financiamento de pesquisas, no currículo e na
publicação de artigos em revistas científicas e/ou especializadas. Em geral,
nenhum destes doutores é assim chamado na vida cotidiana, seja na sala de aula
ou na padaria. E, pelo menos os que eu conheço, caso o fossem, oscilariam entre
o completo constrangimento e um riso descontrolado. Não são estes, com certeza,
os doutores que alimentam também na expressão simbólica a abissal desigualdade
da sociedade brasileira.
Estou bem longe de esgotar o assunto aqui nesta coluna. Faço
apenas uma provocação para que, pelo menos, comecemos a estranhar o que parece
soar tão natural, eterno e imutável – mas é resultado do processo histórico e
de nossa atuação nele. Estranhar é o verbo que precede o gesto de mudança.
Infelizmente, suspeito de que “doutor fulano” e “doutor beltrano” terão ainda
uma longa vida entre nós. Quando partirem desta para o nunca mais, será
demasiado tarde. Porque já é demasiado tarde – sempre foi.
Eliane Brum, escritora, jornalista e documentarista. Ganhou mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de reportagem. É autora de um romance - Uma Duas (LeYa) - e de três livros de reportagens: Coluna Prestes - O Avesso da Lenda (Artes e Ofício), A Vida que Ninguem Vê (Arquipelago Editorial o Jabutí 2007) e Olho da Rua (Globo). E codiretora de dois documentarios: Uma História Severina e Gretchen Filme Estrada.
Nenhum comentário:
Postar um comentário