Por Dirley Fernandes
Apesar do nosso gosto pelas piadas sobre nossos “avozinhos” e de uma ainda persistente visão negativa do senso comum em relação à colonização lusitana do Brasil, o reconhecimento da quase milagrosa obra portuguesa nos trópicos é cada vez mais consistente. Em O mapa que inventou o Brasil, a historiadora Júnia Ferreira Furtado dá mais um passo nesse sentido ao oferecer um amplo panorama do momento de definição da nossa conformação geográfica (quase) definitiva: o século XVIII, com suas permanentes negociações e sucessivos tratados diplomáticos negociados na Europa entremeados de bombardeios e escaramuças nas águas do Prata e do Atlântico Sul ou nas cidades coloniais americanas.
Municiada de farta pesquisa – onde o destaque é a luz jogada sobre o acervo da Biblioteca Braziliana da Robert Bosch GmbH Stuttgart, na Alemanha –, Júnia traça o percurso das idas e vindas que levaram ao Tratado de Madri, que, em 13 de janeiro de 1750, redividiu as terras da América do Sul entre Espanha e Portugal – consolidando o domínio português para muitíssimo a oeste do que fora definido dois séculos e meio antes pelo Tratado de Tordesilhas. Em outras palavras, dotou o futuro país que hoje somos de territórios como o Rio Grande do Sul, a porção oeste de Santa Catarina, o Mato Grosso, o Amazonas etc.
Um tratado por certo vantajoso, que foi obtido sobretudo com uma carta que os lusos tinham na manga para vencer os representantes de Castela: o conhecimento dos rincões do continente, o grande centro da América, distante do Pacífico ou do Atlântico onde se encontram a Amazônia, o Pantanal, os pampas... Esse conhecimento se deu tanto com as entradas, bandeiras, tropas e missões com intenções religiosas ou de busca de comércio, ouro, diamantes, eldorados ou escravaria quanto com o aperfeiçoamento da cartografia. O ponto culminante desse segundo movimento se deu com a confecção da Carte de l’Amérique Méridionale, publicada em 1748.
No desenho clean desse mapa iluminista de uma América de proporções bem próximas à cartografia atual, se vê um fino tracejado verde. Essa linha parte de uma pequena faixa de terra no atual Rio Grande do Sul, ao sul da lagoa Mirim, avança a oeste para incorporar o Mato Grosso e, depois de acompanhar o percurso do rio Paraguai por alguns centímetros, descreve uma curva acentuada em direção noroeste, por um território em que o vazio pictórico ilustra à perfeição o desconhecimento de qualquer europeu sobre aquela região. O traço segue firme até atingir o percurso do “Riviere des Amazones”, já relativamente próximo aos Andes e ao Pacífico. O território no interior dessa linha é assinalado com o nome “Brésil”. A tese de Júnia é que esse mapa inventou o Brasil.
Nessa visão, o mapa não seria um retrato da realidade, mas a expressão cartográfica de um projeto geopilítico para a América portuguesa. O artífice desse projeto foi um savant iluminista, o embaixador Luís da Cunha, que serviu em Paris, nos Países Baixos e na Inglaterra e tornou-se, ao longo de 52 anos de serviço à Coroa, uma espécie de oráculo do reino em temas de política externa, um ás da negociação que sabia lançar mão de amizades, pressões e, se necessário, suborno.
A trajetória de Dom Luís, revelada em extensa correspondência com outros oficiais do rei, revela um personagem de influência decisiva para a formatação geográfica do Brasil. Dele, partiu a noção de que a informação cartográfica seria um grande trunfo para Portugal nas quase permanentes discussões sobre os limites das possessões das duas Coroas na América.
O segundo personagem é Jean-Baptiste Bourguignon d’Anville, um cartógrafo de gabinete que teria “inventado” o Brasil desde sua oficina numa galeria do Louvre, de onde nunca saiu para enfrentar o vasto continente desconhecido da América. Ele se valeu da análise crítica de uma pletora de documentos, relatos, medições feitas por religiosos, aventureiros, oficiais diversos e até comerciantes como os irmãos Nunes.
Os irmãos Nunes, dois cristãos-novos que deixaram a Beira para se estabelecer no Brasil, faziam o “Caminho dos currais”, que partia da ilha de Itaparica em direção ao rio São Francisco e de lá descia o sertão até atingir as regiões das minas e sua capital, Vila Rica. Nas minas, os irmãos se estabeleceram até que o braço da Inquisição os alcançasse e os obrigasse a fugir de volta ao Velho Continente.
Antes disso, os desletrados tratantes (uma mistura, grosso modo, de atravessadores e mascates) deixaram um relato ditado a um escriba do “intinerário de 250 léguas que me conduziu, partindo da Baía de Todos os Santos até Vila Rica”, nas palavras de D’Anville. A descrição testemunha a visão edênica que os judeus e cristãos europeus alimentavam em relação à América naquele momento.
Dom Luís, já nas primeiras décadas do século XVIII, defendia a mudança da corte para o Rio de Janeiro, por ser mais cômodo e seguro “estar onde se tem o que sobeja do que onde se espera o de que se carece”. O estadista imaginou um Brasil com território suficiente para proteger “o bem que a velha tem”: “aquelas Minas (Gerais)”. Por isso, a preocupação de empurrar as fronteiras mais a oeste. A Amazônia foi prêmio colateral: quase ninguém sabia o que havia por lá, o que o mapa expressa com um vazio gráfico.
Mas a lenda do Eldorado tinha ainda algum status de realidade, assim como a da tribo das amazonas. D’Anville deu forma a esse país imaginado. O livro de Júnia conta essa história (e de quebra, ilumina para o leitor leigo como a pequena colônia de Sacramento foi peça importante no xadrez das metrópoles ibéricas), com alguns problemas de revisão compensados por uma luxuosa edição e material iconográfico de primeira linha, sob os auspícios da Odebrecht, patrocinadora do Prêmio Odebrecht de Pesquisa Histórica – Clarival do Prado Valladares, conquistado pelo projeto da pesquisadora mineira em 2011.
Dirley Fernandes é editor da Revista História Viva
io Odebrecht de Pesquisa Histórica – Clarival
Apesar do nosso gosto pelas piadas sobre nossos “avozinhos” e de uma ainda persistente visão negativa do senso comum em relação à colonização lusitana do Brasil, o reconhecimento da quase milagrosa obra portuguesa nos trópicos é cada vez mais consistente. Em O mapa que inventou o Brasil, a historiadora Júnia Ferreira Furtado dá mais um passo nesse sentido ao oferecer um amplo panorama do momento de definição da nossa conformação geográfica (quase) definitiva: o século XVIII, com suas permanentes negociações e sucessivos tratados diplomáticos negociados na Europa entremeados de bombardeios e escaramuças nas águas do Prata e do Atlântico Sul ou nas cidades coloniais americanas.
Municiada de farta pesquisa – onde o destaque é a luz jogada sobre o acervo da Biblioteca Braziliana da Robert Bosch GmbH Stuttgart, na Alemanha –, Júnia traça o percurso das idas e vindas que levaram ao Tratado de Madri, que, em 13 de janeiro de 1750, redividiu as terras da América do Sul entre Espanha e Portugal – consolidando o domínio português para muitíssimo a oeste do que fora definido dois séculos e meio antes pelo Tratado de Tordesilhas. Em outras palavras, dotou o futuro país que hoje somos de territórios como o Rio Grande do Sul, a porção oeste de Santa Catarina, o Mato Grosso, o Amazonas etc.
Um tratado por certo vantajoso, que foi obtido sobretudo com uma carta que os lusos tinham na manga para vencer os representantes de Castela: o conhecimento dos rincões do continente, o grande centro da América, distante do Pacífico ou do Atlântico onde se encontram a Amazônia, o Pantanal, os pampas... Esse conhecimento se deu tanto com as entradas, bandeiras, tropas e missões com intenções religiosas ou de busca de comércio, ouro, diamantes, eldorados ou escravaria quanto com o aperfeiçoamento da cartografia. O ponto culminante desse segundo movimento se deu com a confecção da Carte de l’Amérique Méridionale, publicada em 1748.
No desenho clean desse mapa iluminista de uma América de proporções bem próximas à cartografia atual, se vê um fino tracejado verde. Essa linha parte de uma pequena faixa de terra no atual Rio Grande do Sul, ao sul da lagoa Mirim, avança a oeste para incorporar o Mato Grosso e, depois de acompanhar o percurso do rio Paraguai por alguns centímetros, descreve uma curva acentuada em direção noroeste, por um território em que o vazio pictórico ilustra à perfeição o desconhecimento de qualquer europeu sobre aquela região. O traço segue firme até atingir o percurso do “Riviere des Amazones”, já relativamente próximo aos Andes e ao Pacífico. O território no interior dessa linha é assinalado com o nome “Brésil”. A tese de Júnia é que esse mapa inventou o Brasil.
Nessa visão, o mapa não seria um retrato da realidade, mas a expressão cartográfica de um projeto geopilítico para a América portuguesa. O artífice desse projeto foi um savant iluminista, o embaixador Luís da Cunha, que serviu em Paris, nos Países Baixos e na Inglaterra e tornou-se, ao longo de 52 anos de serviço à Coroa, uma espécie de oráculo do reino em temas de política externa, um ás da negociação que sabia lançar mão de amizades, pressões e, se necessário, suborno.
A trajetória de Dom Luís, revelada em extensa correspondência com outros oficiais do rei, revela um personagem de influência decisiva para a formatação geográfica do Brasil. Dele, partiu a noção de que a informação cartográfica seria um grande trunfo para Portugal nas quase permanentes discussões sobre os limites das possessões das duas Coroas na América.
O segundo personagem é Jean-Baptiste Bourguignon d’Anville, um cartógrafo de gabinete que teria “inventado” o Brasil desde sua oficina numa galeria do Louvre, de onde nunca saiu para enfrentar o vasto continente desconhecido da América. Ele se valeu da análise crítica de uma pletora de documentos, relatos, medições feitas por religiosos, aventureiros, oficiais diversos e até comerciantes como os irmãos Nunes.
Os irmãos Nunes, dois cristãos-novos que deixaram a Beira para se estabelecer no Brasil, faziam o “Caminho dos currais”, que partia da ilha de Itaparica em direção ao rio São Francisco e de lá descia o sertão até atingir as regiões das minas e sua capital, Vila Rica. Nas minas, os irmãos se estabeleceram até que o braço da Inquisição os alcançasse e os obrigasse a fugir de volta ao Velho Continente.
Antes disso, os desletrados tratantes (uma mistura, grosso modo, de atravessadores e mascates) deixaram um relato ditado a um escriba do “intinerário de 250 léguas que me conduziu, partindo da Baía de Todos os Santos até Vila Rica”, nas palavras de D’Anville. A descrição testemunha a visão edênica que os judeus e cristãos europeus alimentavam em relação à América naquele momento.
Dom Luís, já nas primeiras décadas do século XVIII, defendia a mudança da corte para o Rio de Janeiro, por ser mais cômodo e seguro “estar onde se tem o que sobeja do que onde se espera o de que se carece”. O estadista imaginou um Brasil com território suficiente para proteger “o bem que a velha tem”: “aquelas Minas (Gerais)”. Por isso, a preocupação de empurrar as fronteiras mais a oeste. A Amazônia foi prêmio colateral: quase ninguém sabia o que havia por lá, o que o mapa expressa com um vazio gráfico.
Mas a lenda do Eldorado tinha ainda algum status de realidade, assim como a da tribo das amazonas. D’Anville deu forma a esse país imaginado. O livro de Júnia conta essa história (e de quebra, ilumina para o leitor leigo como a pequena colônia de Sacramento foi peça importante no xadrez das metrópoles ibéricas), com alguns problemas de revisão compensados por uma luxuosa edição e material iconográfico de primeira linha, sob os auspícios da Odebrecht, patrocinadora do Prêmio Odebrecht de Pesquisa Histórica – Clarival do Prado Valladares, conquistado pelo projeto da pesquisadora mineira em 2011.
Dirley Fernandes é editor da Revista História Viva
io Odebrecht de Pesquisa Histórica – Clarival
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